quarta-feira, 30 de junho de 2010

10- Comentário do filme "O trem da vida" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

O TREM DA VIDA
NOMEAÇÃO DE GRUPOS: um poderoso instrumento ideológico
José Luiz Quadros de Magalhães


A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é um tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif . Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga disse para a imprensa francesa: “...morreram judeus que estavam dentro da cinagoga e inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu.” Qual o significado da palavra “judeu” agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear grupos de pessoas facilita a dominação.
Badiou menciona que o anti-semitismo (judeofobia) de Barre não mais é tolerado pela média da opinião pública francesa. Entretanto um outro tipo de judeofobia surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro, Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo, mas debater a existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.
Assim como ocorre com varias outras palavras de forma menos radical (liberdade e igualdade, por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazistas e fascistas), seja de sacrifício (como cristãos no passado e judeus e mulçumanos no presente), estas nomeações nos expõem ao pior.
Vários equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do “estado judeu” aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também comprometidas com um discurso democrático, tolerarem praticas de tortura e assassinatos seletivos por parte do estado de Israel, por ser este estado um “estado judeu”.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados.
O filme “trem da vida” é um maravilhoso poema a pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um predicado “judeu” na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro de um outro grupo gera segregação. A análise histórica da invenção de uma identidade coletiva e da criação de identificações com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, mostra a força e o perigo da segregação que daí decorre, anulando o sujeito livre, com a anulação do nome próprio em nome de uma nomeação coletiva (um nome do grupo).
Um mundo onde a pessoa seja vista sempre como pessoa, em toda sua complexidade e singularidade, sejam quais forem suas identificações ou identidades, este é o mundo onde a paz e a justiça serão possíveis. Lembrando Badiou, toda nomeação na terceira pessoa, nós x eles, é um passo perigoso em direção ao extermínio. Esta equação pode ser substituída por outros nomes coletivos como “nós os adolescentes x eles os menores”; “nós os Tutsis x eles os Utus”; “nós a classe média x eles os favelados”. O uso do “ele” é uma autorização à exclusão, ao extermínio e a discriminação. É como se “eles” fossem uma categoria diferente de pessoa, uma meia pessoa, ou não pessoa. Os processos decisórios que jogam pessoas (eles os sem teto) na rua; as prisões ilegais de adolescentes (eles os menores) autorizadas pelas “autoridades”; o encarceramento em massa de pessoas (eles os pobres) como política oficial do estado; as guerras e sanções econômicas que levam centenas de milhares de pessoas (eles o muçulmanos) à morte; e muitos outros exemplos são repetições diárias das práticas nazistas do “nós” x “eles”. Toda vez que a expressão “eles” é pronunciada, o Eichman ( o carrasco nazista que foi responsável pela morte de milhões de “eles os judeus”) se manifesta dentro das pessoas.
O mais insuportável é pensar que Eichman não era um monstro, mas uma pessoa que não reconhecia, nos outros, pessoas singulares, mas sim “eles, os judeus” que para ele não eram seres humanos. Da mesma forma assistimos ainda hoje como “eles” os “menores” são encarcerados em Betim (se fossem “adolescentes” não estariam ali); ou “eles” os “pobres” que tem suas casas invadidas por agentes do Estado (se fossem ricos as casas seriam protegidas pelo Estado e não invadida por este); ou “eles” os “pobres” que são esquecidos nos presídios (pois se fossem ricos teriam dinheiro para pagar um advogado e provavelmente não estariam presos); ou “eles” que dormem embaixo de uma ponte, ou morrem de fome, ou são torturados, ou são despejados, ou...........

Jose Luiz Quadros de Magalhães

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