quarta-feira, 23 de junho de 2010

1- Direito a moradia em Belo Horizonte - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy: comunidades que lutam por um direito constitucional.
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
Mestre e Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais

Em Belo Horizonte, MG, nos últimos 2,6 anos três comunidades estão se destacando na luta por um direito constitucional básico: o direito à moradia. Trata-se das Comunidades Camilo Torres (142 famílias) e Irmã Dorothy (130 famílias), no Barreiro; e Dandara (887 famílias), no Céu Azul, região da Nova Pampulha. Ao todo são 1.159 famílias que lutam pelo reconhecimento de claro direito constitucional. São importantes movimentos sociais que ajudam a tornar efetivo o texto constitucional para todas as pessoas.
Segundo dados do IBGE e Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte, hoje, existem aproximadamente 75 mil imóveis ociosos entre terrenos e edificações, contra um déficit habitacional de 55 mil famílias sem-casa. Na região metropolitana da capital mineira há mais de 173 mil famílias sem-casa. A Prefeitura de Belo Horizonte assumiu compromisso de construir apenas 300 moradias por ano e exige respeito a uma fila de quem está cadastrado em Núcleos de Moradia. Segundo dados da Prefeitura de Belo Horizonte existem hoje aproximadamente 13 mil famílias pobres cadastradas em 175 Núcleos de moradia espalhados por toda a capital mineira. Se os sem-casa aguardarem resignadamente na fila, terão que esperar 44 anos para chegar à tão sonhada “Casa Própria”, isto sem falar nas outras 43 mil famílias e nos 177 mil cadastrados, em apenas uma semana, no Programa “Minha casa, minha vida.”
1) Comunidade Camilo Torres
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acatou dia 05 de novembro de 2009, o recurso da Empresa Vitor Pneus para ordenar o despejo das 142 famílias sem-casa da Comunidade Camilo Torres, localizada Av. Perimetral, 450, Vila Santa Rita, bairro Jatobá, Belo Horizonte, MG. Mais uma equivocada decisão judicial que não considera a necessidade de compreender o sistema jurídico como integral e coerente. Não há opção possível em garantir a propriedade e negar a dignidade humana. A decisão marca uma opção que o sistema jurídico não permite: a especulação imobiliária em prejuízo da função social da propriedade e do direito à moradia.
O cenário do conflito social é um terreno que pertencia ao Estado de Minas Gerais – CODEMIG - e foi transferido a uma pessoa física, dono de uma empresa, em 1992, por um preço 10 vezes inferior ao valor venal do imóvel. Além disso, a venda do terreno foi condicionada, em escritura pública, à realização de empreendimentos industriais na área para geração de empregos, o que jamais foi feito.
Uma decisão de primeira instância reconheceu a inexistência de posse reconhecendo o direito das famílias sem-casa que ocupam a área abandonada. Foi uma importante vitória da justiça constitucional. Entretanto, a decisão foi cassada pelo Tribunal.

2) Comunidade Irmã Dorothy
Em abril de 2010, a Empresa Tram Locação de Equipamentos Ltda e outros particulares ingressaram com uma Ação de Reintegração de Posse em desfavor das famílias que ocupam área na Vila Santa Rita, no Barreiro. Hoje, são 120 famílias ocupando a área, que, originariamente, pertencia ao Distrito Industrial de Minas Gerais. Esta área foi repassada para uma empresa de São João Nepomuceno, com o objetivo de instalar um empreendimento industrial, em vinte meses. Decorridos apenas cinco meses, a mesma empresa repassou o imóvel, como dação em pagamento, para o Banco Rural. Hoje o proprietário é o Banco Rural, com a anuência da CODEMIG. O compromisso de se construir um empreendimento industrial foi completamente esquecido. Posteriormente o Banco Rural prometeu vender o imóvel para a Empresa Tram e outras pessoas. Em seguida, estes prometeram vender o imóvel para a ASACOPR Empreendimentos e Participações S/A, construtora que ingressou com pedido de financiamento para construção de moradia no local, pelo Programa “Minha Casa, Minha Vida”. O pedido foi aprovado. Só falta a aprovação do projeto pela Prefeitura de Belo Horizonte - PBH.
O juiz da 3ª Vara Cível do Forum Regional Barreiro concedeu liminar. Da decisão se interpôs Agravo de Instrumento, ao qual foi conferido efeito suspensivo. Dois meses depois, em prazo recorde, o recurso foi julgado e a ele negado provimento. Foi então proposto Embargo Declaratório.

3) Comunidade Dandara
Dia 9 de abril de 2009 cerca de 140 famílias sem-casa, sem acesso ao direito constitucional à moradia, tomaram posse de imóvel abandonado há quatro décadas, no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte. Uma vez na posse, realizaram a limpeza de todo o terreno, cercando a área necessária para o assentamento. Isto feito, passaram a morar em barracos de lona enquanto gradualmente providenciavam a construção de moradias. Hoje residem na Comunidade Dandara 887 famílias.
A Construtora Modelo Ltda ingressou com um pedido de reintegração de posse contra integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST -, visando o desalojamento das famílias que ocupam uma área de 400 mil metros quadrados na região de confluência dos municípios de Contagem, Belo Horizonte e Ribeirão das Neves, sendo, inicialmente, concedida uma liminar para que esta reintegração fosse efetivada de plano.
Inconformados com a decisão, o Serviço de Assistência Judiciária da PUC Minas interpôs Agravo de Instrumento. O Exmo. Sr. Desembargador José de Anchieta Mota e Silva, no plantão forense, resolveu então dar ao recurso o efeito suspensivo, determinando o recolhimento do mandado de reintegração de posse já expedido.
No final do mês de maio de 2009, o Exmo. Sr. Desembargador Tarcísio José Martins Costa, relator do Agravo de Instrumento, revogou a decisão proferida pelo Exmo. Sr. Desembargador José de Anchieta Mota e Silva, determinando, por via de conseqüência, o cumprimento da liminar de reintegração de posse deferida em primeiro grau de jurisdição.
Diante desta nova situação foi impetrado Mandado de Segurança contra o ato ilegal, praticado pelo eminente Sr. Desembargador Tarcísio Martins Costa (relator do mencionado Agravo de Instrumento). O eminente Sr. Desembargador Nepomucenno Silva deferiu a liminar e manteve os impetrantes na posse do imóvel.
A corajosa e correta decisão do desembargador reconheceu o direito constitucional das mais de 4 mil pessoas de Dandara que até então tiveram negados os direitos constitucionais mais básicos, e logo, mais importantes, essenciais para a ordem constitucional, como moradia, essencial para a garantia de dignidade, a todos assegurada pela Constituição Federal de 1988.

4) Reflexões constitucionais a partir da realidade exposta acima
As mais de cinco mil pessoas que reivindicam seus direitos constitucionais são detentoras de direitos fundamentais como qualquer outra pessoa e estão integradas à vida da cidade, na execução dos trabalhos rotineiros essenciais para o funcionamento desta, como os serviços de limpeza e construção.
O direito de propriedade da Construtora Modelo Ltda, das Empresas Tram Locação de Equipamentos Ltda e Vitor Pneu Ltda e da Prefeitura de Belo Horizonte – as que requereram na Justiça o direito de reintegração de posse de suas pretensas propriedades ocupadas por famílias carentes - só pode ser compreendido dentro do sistema constitucional. Não há no ordenamento jurídico a possibilidade do intérprete do sistema escolher direitos ou princípios em detrimento de outros. Os direitos constitucionais e infraconstitucionais devem ser compreendidos dentro da lógica sistêmica do ordenamento e sempre diante da complexidade do caso concreto.
Todo o direito à propriedade está sujeito ao cumprimento de sua função social, e nenhum direito à propriedade pode ser considerado superior à vida humana. Não existe no nosso ordenamento jurídico nada que autorize qualquer decisão judicial ou administrativa, qualquer ação de ente público ou pessoa privada que possa comprometer a vida de uma pessoa em razão de direitos sobre imóveis, bens públicos ou privados. Priorizar a propriedade sobre a vida é compreensão que pertence a uma ordem constitucional liberal que há muito deixou de existir, embora alguns ainda insistam em lembrá-la contra todo o ordenamento constitucional e seu sistema de regras, princípios e valores.
As famílias pobres das Comunidades Camilo Torres, Dandara e Irmã Dorothy se instalaram em imóveis abandonados, ou melhor, utilizados para especulação, sem qualquer resistência. Fizeram ocupações no exercício de direito social fundamental. Ora, diante da insensibilidade e omissão dos poderes públicos, diante de situação absurda que beira a total irracionalidade, as famílias que hoje residem nessas comunidades tomaram a iniciativa de exercer direitos: o direito de viver com dignidade, de morar e de alguma forma oferecer para as crianças e idosos que ali se encontram um pouco de esperança em um futuro pautado pela igualdade republicana, fundamento primeiro de nossa Constituição.
Uma determinação de reintegração da área à Construtora Modelo Ltda, às Empresas Tram Locação de Equipamentos Ltda e Vitor Pneu Ltda; e à Prefeitura de Belo Horizonte, fundamentada em interpretação não sistêmica, que ignora a ordem constitucional e se fundamenta exclusivamente na legislação civil, pertence a um passado legalista que não mais encontra abrigo na ordem constitucional democrática de 1988 e que tem como guardião constitucional final o Supremo Tribunal Federal. Aliás, o Supremo Tribunal Federal tem, em diversos momentos, demonstrado como uma ordem democrática e constitucional não se sustenta em interpretações legalistas reducionistas. Não se pode ignorar os direitos (princípios e regras) constitucionais na solução do caso concreto. A vida humana é o valor supremo de nossa ordem constitucional republicana, onde todas as pessoas têm o mesmo valor, têm os mesmos direitos. Isto é básico em nosso ordenamento e a desigualdade e indignidade a que são submetidas estas pessoas salta aos olhos de qualquer pessoa. Não é necessário fazer o curso de Direito para reconhecer que o princípio constitucional republicano não está sendo observado quando se nega o direito a moradia a qualquer pessoa para manter o ilegítimo e inconstitucional ganho com a especulação imobiliária.
A exclusão urbana (assim como qualquer forma de exclusão) é inconstitucional, e logo, qualquer ação, de quem quer que seja, que a sustente ou mantenha, é absolutamente inconstitucional. A segregação espacial, a que estas pessoas estavam submetidas, vem acompanhada de dificuldade de acesso aos equipamentos públicos essenciais disponíveis (saúde, educação, transporte, saneamento básico etc.); relações sociais fragmentadas, falta de acesso ao lazer e desgaste na convivência social marcada por preconceitos e marginalizações.
Lembrando que estamos tratando aqui de respeito ao mínimo de racionalidade pautada pela ordem constitucional, lembramos que a retirada dessas famílias de imóveis abandonados (e com a finalidade de especulação), sem um planejamento da forma como serão absorvidas no meio urbano, criará uma situação insustentável: como admitir alguma racionalidade jurídica, democrática e constitucional no fato de jogar pessoas no meio da rua, à sua própria sorte, para garantir um direito de propriedade ilegítimo, uma vez que se justifica pelo enriquecimento sem trabalho, condenado pela Constituição, por meio da especulação imobiliária.
Não caberia aqui analisar a nossa ordem econômica constitucional, mas a situação se reveste de tal absurdo que sempre é bom lembrar que o nosso sistema econômico constitucional, no artigo 170 e seguintes, opta claramente pelas formas de ganho com o trabalho, condicionando e limitando as formas de ganho sem trabalho. Desta forma, as formas de ganho com o trabalho como o salário e o lucro (este segundo desde que fruto da livre iniciativa e concorrência) são protegidas, e as formas de ganho sem trabalho como os juros, a renda (alugueis, especulação e outras formas) e o lucro sem concorrência são expressamente limitados.
Não é mais possível sustentar que decisões fundamentadas em leituras descontextualizadas, frias, que desconsideram a vida humana ou que tratam as pessoas como se fossem de categorias diferentes (aqueles que podem sofrer muito mais do que nós suportaríamos e aqueles que não podem sofrer nada) continuem existindo em nosso ordenamento jurídico constitucional. A pessoa é o centro de tudo, qualquer pessoa, e nada justifica o seu sofrimento. Quando ainda vemos tratores passando sobre casas e sobre os poucos objetos de uso nestas casas existentes, imaginamos filmes que deveriam retratar um passado não mais existente. Talvez se mudássemos os personagens deste filme e nos colocássemos no lugar daqueles que perdem o quase nada que têm, junto com um resto de esperança atropelada pelo poder, esta questão já estivesse sido resolvida. Ora, muito tempo passou, muita coisa aconteceu, muitas pessoas morreram para que ainda consideremos a hipótese da existência de pessoas sem casa, sem comida, sem dignidade. Não há argumento que possa justificar isto, muito menos os não argumentos processuais formais frios que ignorem o calor dos corpos.
Vamos então desenvolver alguns aspectos anteriormente ressaltados. Como já afirmado, a situação jurídica deve ser compreendida a partir de uma percepção sistêmica da questão. A primeira pergunta que nos colocamos é a seguinte: existe um mau funcionamento do sistema jurídico? Ou podemos colocar em outras palavras: quais são as contradições aparentes de um sistema republicano marcado por sua constante negação quando da criação de privilégios que não encontram abrigo nos princípios do sistema jurídico constitucional?
Vamos explicar melhor esta premissa, entendendo primeiramente conceitos básicos do Direito Constitucional e posteriormente trabalharemos exemplos gerais de nosso sistema, o que faremos pontualmente para tornar claro:
Comecemos por uma afirmação obvia do ponto de vista jurídico, mas que a realidade em que vivemos nem sempre confirma: vivemos em uma república!
O artigo 1° da Constituição Federal de 1988 traz uma série de conceitos importantes que se constituem em princípios estruturantes e fundamentais da República brasileira.
No caput do artigo encontramos menção a República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal que se constituem em um Estado Democrático de Direito. Nos incisos I a V encontramos os princípios fundamentais sobre os quais se estrutura nossa República: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Finalmente, no parágrafo único, o texto constitucional nos remete à democracia representativa e a democracia direta como fundamento da vontade do poder organizado pela Constituição.
Importante lembrar que princípios são normas jurídicas de observância obrigatória e que devem ser interpretados diante dos casos concretos para ganharem densidade e se desdobrarem em regras para o caso que permitam resolver conflitos e garantir os direitos das pessoas.
Devemos nos lembrar que, quando buscamos regras aplicáveis a uma situação especifica, estas regras devem ser interpretadas para a construção da norma, juntamente com os princípios.
Os princípios, por sua maior amplitude regulatória, se aplicam ao maior numero de situações possíveis. Uma diferença importante entre princípios e regras é o fato de que as regras regulam uma situação especifica enquanto os princípios regulam diversas situações.
Não é possível que duas regras regulem a mesma situação de forma distinta, uma deve desaparecer. Já os princípios regulam e protegem simultaneamente um grande numero de situações e caso haja conflito, este só ocorre no caso concreto, onde então, um (ou alguns) dos princípios em conflito, deverá ter sua aplicação afastada, especificamente, naquele caso onde ocorreu o conflito, sendo válido e aplicável em todas as outras situações onde não ocorra conflito semelhante.
Finalmente, lembremos que, caso alguma regra constitucional entre em conflito com os princípios constitucionais em um caso concreto, a regra deve ceder espaço à aplicação do princípio.
Estamos, portanto, neste artigo 1°, diante de normas constitucionais fundamentais de nosso ordenamento jurídico.
Passemos então a análise sistêmica destes significados que recebem historicamente significantes distintos. Aqui nos interessa sua compreensão contemporânea, democraticamente construída pelo povo, titular da soberania.
República: No passado a palavra República significou uma forma de governo contraposta à Monarquia. Desta forma a República seria uma forma de governo do povo, onde este participaria do governo diretamente ou por meio de representantes, enquanto na Monarquia, haveria o governo de um só, fundado nos privilégios hereditários e numa fundamentação artificial do poder do soberano na vontade divina.
A ideia de República se contrapondo à monarquia, como sendo uma forma de estado onde o governo (unipessoal e ou colegiado) é escolhido pelo povo se refere ao conceito moderno. Importante lembrar que o significado da palavra república mudou muito no decorrer da história.
A ideia de coisa pública e de igualdade é essencial ao conceito de República. A República é um espaço onde não há privilégios hereditários ou qualquer outro. República, portanto, é um espaço de igualdade perante a lei. Ser republicano é reconhecer a coisa pública, os bens públicos, o patrimônio histórico, artístico e cultural como pertencente igualmente a cada pessoa e a todas as pessoas simultaneamente. Em uma República não se admite privilégios, de nenhuma espécie, seja por razão de sobrenome, de riqueza, de conhecimento, cargo, posição profissional ou qualquer outra diferenciação.
Em uma República a pessoa é reconhecida como portadora de direitos iguais seja qual for sua posição. Uma ilustração interessante da ideia republicana na contemporaneidade está na não aceitação de entradas especiais; “carteiradas”; filas furadas; salas especiais; clientes especiais de acordo com a conta bancária; espaços reservados para quem use ternos e gravatas ou prisão especial para quem tem curso superior. Uma coisa é tratar de forma diferente situações diferentes buscando a igualdade, outra coisa é agravar a diferença injustamente, com a criação de privilégios.
Falar-se então em República no Brasil vai além de uma simples ideia de uma forma de governo do povo, isto é reiterado pelo conceito de Estado Democrático e Social de Direito. República, além do povo no poder, significa dizer que este povo no poder não pode aceitar ou criar privilégios de nenhuma natureza. Cada um, mesmo que seja minoria, mesmo que seja o único, tem direitos iguais perante a lei. Tem direito de ser reconhecido como integrante da República e, portanto, como construtor do caminho coletivo da vontade estatal.
Cidadania: O conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma perspectiva sistêmica onde cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela pessoa que tem meios para exercer o voto de forma consciente e participativa. Portanto cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, saúde, moradia, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que permite que o cidadão possa desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente, da construção da vida coletiva no Estado democrático.
Em sentido estrito, cidadania é a condição formal de participação na construção da vontade do Estado democrático, por meio do voto. A Constituição brasileira proclama o sufrágio universal e o voto direto e secreto com igual valor para todos.
A teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais foi responsável pela ampliação do conceito de cidadania. Pela teoria da Indivisibilidade, os direitos políticos são dependentes dos outros direitos fundamentais da pessoa humana. Para que tenhamos democracia política e exercício de cidadania política é necessário que as pessoas tenham acesso aos meios para a efetivação da liberdade. Os direitos sociais e econômicos são meios que possibilitam o efetivo exercício das liberdades individuais e políticas.
Para que se efetive a democracia política é necessária a democracia social e econômica e o respeito aos direitos de liberdade. Nesta perspectiva, a democracia participativa, institucionalizada ou não, passa a ser elemento de aperfeiçoamento da democracia representativa.
Dependem os direitos políticos de direitos econômicos, mais precisamente, de normas do Estado que concretizem uma política econômica que busque a democracia econômica, sem a qual a democracia política e a cidadania estarão comprometidas.
A democracia representativa e participativa deve ser amparada no direito social à educação livre e plural e o acesso à cultura, como forma do exercício real da liberdade de consciência. Da mesma forma a democracia econômica pode permitir a democratização dos meios de comunicação social. Enfim, a indivisibilidade dos direitos fundamentais reconhece a complexidade do sistema de direitos, ultrapassando o discurso constitucional clássico referente à cidadania política estrito senso, em direção a efetividade democrática de uma democracia dialógica em permanente processo de transformação e conquista de direitos.
Dignidade da pessoa humana: Outro conceito amplo e complexo é o de dignidade da pessoa humana. A dignidade com sua necessária compreensão histórica é condição primeira para a existência de cidadãos em uma república.
A historicidade do conceito é seu elemento fundamental: dignidade é um conjunto de condições sociais, econômicas, culturais e políticas que permitem que cada pessoa possa exercer seus direitos com liberdade e esclarecimento consciente, em meio a um ambiente de respeito e efetividade dos direitos individuais, sociais, políticos e econômicos de todos e cada uma das pessoas.
A historicidade é fundamental neste conceito uma vez que é a sua compreensão dentro de uma cultura específica que gera o sentimento de bem-estar e segurança social típico de uma situação de respeito aos direitos de todos. As necessidades de uma cultura, em um tempo e em um espaço específicos, são e podem ser muito diferentes.
Kant formulou o segundo imperativo categórico como exigência do “princípio da dignidade humana”: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Para Kant toda pessoa, todo ser racional possui um valor intrínseco não relativo que é a dignidade.
Podemos compreender a ideia de dignidade na Constituição, buscando a vinculação da ideia moral desenvolvida pelos filósofos, com a existência de condições materiais que permitam florescer a cultura humana, e onde o respeito encontrado pela vida de cada um permita o cultivo do respeito da vida do outro. É a existência efetiva do respeito aos direitos sociais, econômicos, individuais, políticos e culturais de cada pessoa, de cada grupo social, de cada comunidade, que permitirá que se construa em cada um desses espaços uma cultura de respeito humano. Onde há exclusão, exploração e miséria não é possível respeito mútuo, pois não há dignidade na injustiça.
Uma questão importante nos chama a atenção. Por qual razão toleramos a falta de dignidade? O filósofo francês Alain Badiou nos ajuda nesta reflexão. A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif . Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre, comentando um atentado a uma sinagoga, disse para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da sinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Qual o significado da palavra judeu que agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazistas e fascistas) seja de sacrifício (como cristãos no passado) é simplificadora e perigosa.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos, mas que ultrapassa este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados, responsável por convivermos com a miséria, a fome, a violência, enfim, com a indignidade.
A introdução do tema identidade e identificação com grupos, religiões, estados, partidos, ideias, é importante para compreendermos as várias formas de segregação, sempre irracional. A exclusão surge com a anulação do sujeito livre, com a anulação do nome próprio substituído por um nome coletivo.
Um mundo onde a pessoa seja vista sempre como pessoa, em toda sua complexidade e singularidade, sejam quais forem suas identificações ou identidades, este é o mundo onde a paz e a justiça serão possíveis e logo onde a dignidade será uma exigência. Se vemos no outro um igual, seja qual for sua identificação coletiva, se vemos no outro uma pessoa, a indignidade não será mais tolerada.
Isto posto podemos citar inúmeros exemplos de incorreto funcionamento do sistema. Impressionante como muitas vezes as instituições criadas pela Constituição funcionam à margem do sistema constitucional ou mesmo contra o sistema constitucional.
Exemplo 1: Nosso sistema tributário claramente beneficia um grupo social em prejuízo de outros grupos sociais. São incontáveis os casos de endividamento pessoal grave quando um cidadão de classe média não paga seus impostos. Ao contrário, quando uma grande empresa não paga milhões é recorrente o perdão ou a negociação da dívida. No mesmo sistema tributário, percentualmente é claro o beneficio a quem mais ganha enquanto quem menos ganha compromete parcelas maiores de seus ganhos com o pagamento de tributos. A República não está presente no nosso sistema Tributário.
Exemplo 2: O sistema penal pune rigorosamente os pobres que são sistematicamente presos e esquecidos nas penitenciárias, enquanto a corrupção, a sonegação fiscal e vários outros tipos de crimes cometidos por pessoas ricas ficam, na maior parte das vezes, sem punição. Interessante lembrar o caso do banqueiro Daniel Dantas que foi liberado por uma liminar algumas horas depois de sua prisão, enquanto no mesmo momento uma jovem se encontrava presa há mais de sete meses por ter furtado uma barra de manteiga. A República não se encontra presente em nosso sistema penal. O encarceramento em massa de pessoas pobres, a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais populares se contrapõe a tolerância gigantesca com os grandes crimes, cometidos por pessoas ricas. Isto mostra que a prática do sistema diferencia, ao menos, duas grandes categorias de pessoas: aquelas que podem ser privadas de direitos, que podem ser humilhadas, esquecidas, desconsideradas, torturadas, e aquelas pessoas que têm efetivamente direito a ordem constitucional e mais ainda, à tolerância do sistema para além da ordem constitucional, em um sistema de privilégios não sustentado pela mesma Constituição formalmente republicana.
Exemplo 3: Pequenos empresários se não pagarem direitos trabalhistas podem ir à falência. Grandes empresários não pagam direitos trabalhistas, fazendo um cálculo contábil onde o não cumprimento da lei pode lhes ser favorável.
Citei 3 exemplos comuns e claramente visíveis, mas poderia aqui continuar enumerando muitos outros exemplos que se agravam à medida que a diferença econômica aumenta. Lembrando o filósofo e psicanalista francês Alain Badiou, temos no mínimo duas grandes categorias de pessoas: aquelas protegidas pelo sistema jurídico, social e econômico, para além da proteção constitucional republicana e aquelas ignoradas pelo sistema jurídico, social e econômico, para as quais dificilmente se garantem os direitos constitucionais republicanos.
Lembrando ainda Badiou, a nomeação na terceira pessoa é um passo para o genocídio. Quando dizemos nós e eles, o grupo nomeado por “eles” está a um passo de ser exterminado. Isto nos aproxima de um nazista como Eichmann (um dos carrascos nazistas), por exemplo. O sistema nós-eles pode ser caracterizado por diversas equações: nós os arianos X eles os judeus (como na segunda-guerra mundial); nós os Utus X eles os Tutsis (como no genocídio em Ruanda); nós os bons X eles os baderneiros; nós os empreendedores X eles os preguiçosos; nós os proprietários X eles os invasores (na exclusão diária que revela em muitos um pouco de Eichmann que está em muitos de nós). Isto me faz lembrar uma notícia em um jornal de Bairro em Belo Horizonte: “MENOR AGRIDE ADOLESCENTE” (nós os adolescentes X eles os menores).
Processo e Justiça: O processo pode ser utilizado contra a sua finalidade, ou seja, promover a justiça? A resposta deveria ser obvia: claro que não. Entretanto não é isto que ocorre, inclusive no caso em tela, o julgamento do mandado de segurança que por meio de uma liminar, garantia o direito das pessoas que residem em Dandara.
O processo é um meio fundamental para a garantia de direitos e jamais um fim em si mesmo. Se regras ou princípios processuais entram em choque com direitos protegidos em um caso concreto, não há dúvida que prevalecem os direitos fundamentais que não podem ser comprometidos. Não cabe no decorrer de um processo judicial, a discussão de procedimentos de forma separada do direito a ser protegido. Esta descontextualização é cômoda quando não se quer enfrentar a questão central, mas não encontra fundamento lógico-racional no direito processual.
Não há aqui uma conclusão a ser feita, o texto é uma grande conclusão: nada justifica o sofrimento imposto a uma pessoa, nem a forma, nem o procedimento, nem qualquer outra explicação que se queira construir fundada em uma construção retórica. Qualquer solução para o caso concreto, em qualquer caso concreto, passa necessariamente pela preservação da dignidade de qualquer pessoa. O essencial é sempre simples.

Belo Horizonte, 22 de junho de 2010.
José Luiz Quadros de Magalhães – e-mail: ceede@uol.com.br

Um comentário:

  1. de Frei Gilvander:
    Prezado prof. José Luiz Quadros, muito obrigado pela postura firme na defesa das 1.200 famílias sem-casa das Ocupações/comunidades Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy, de Belo Horizonte, MG. Seu artigo/parecer, acima, é um verdadeiro manifesto em prol de um direito justo. Conte comigo na luta por justiça social, reforma agrária e sociedade sustentável. Abraço terno. Frei Gilvander Moreira, gilvander@igrejadocarmo.com.br

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