quarta-feira, 15 de setembro de 2010

55- Teoria da Constituição 4

4 O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO CENTRÍFUGO,
DE TRÊS NÍVEIS E FORMALMENTE SIMÉTRICO

JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHAES

O federalismo centrípeto dirige-se ao centro, pois historicamente originário de Estados soberanos que formaram, no caso norte-americano, uma confederação (1777) e, posteriormente, uma federação (1787). A história norte-americana mostra que nos mais de duzentos anos de existência da federação, a União vem gradualmente centralizando competências incorporando competências dos Estados lentamente e de maneira não constante todos esses anos. Entretanto, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o federalismo centrípeto, justamente por tais motivos, é o mais descentralizado, pois se originou historicamente de Estados soberanos que se uniram e abdicaram de parcelas de sua soberania. Por esse motivo, os Estados-Membros man¬têm um grande número de competências administrativas, legislativas ordinárias e legislativas constitucionais. Essa terminologia, com fre¬qüencia, causa confusão e, por vezes, é empregada de maneira equivocada.
Dessa forma, o grau de descentralização é muito grande, representado pelo grande número de competências administrativas, legislativas e jurisdicionais dos Estados-Membros, que ainda transferem diversas competências para os municípios ou para outros entes territoriais menores assemelhados. Embora caminhem em direção ao centro, esse movimento não é uniforme, uma vez que em momentos de crise há um fortalecimento do centro enquanto nos momentos de crescimento e estabilidade há fortalecimento dos Estados-Membros. Não se pode afirmar até quando permanecerá uma tendência ao fortalecimento do centro (embora com momentos de menor duração de tendência contrária) tomando-se o movimento histórico global.
Importante, portanto, lembrar que o federalismo centrípeto (como são exemplo os Estados Unidos e a Suíça) é formado a partir de Estados soberanos que constituíram uma confederação e depois uma federação. Por esse motivo, percebe-se uma tensão típica desses modelos, em que o movimento constitucional é centrípeto para resistir a uma matriz de poder e cultura política centrífuga, movimento exatamente oposto ao nosso modelo.
O federalismo brasileiro, ao contrário do norte-americano, é centrífugo (movimento constitucional em tensão com um movimento político e cultural centrípeto em nossa história independente até os dias de hoje) e absolutamente inovador ao estabelecer um federalismo de três níveis, incluindo o município como ente federado, e, portanto, com um poder constituinte decorrente. A partir da Constituição de 1988, os municípios brasileiros não só mantêm sua autonomia, como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de leis orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivos e Legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja possível ou permitida a intervenção do Legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorrerá com as Constituições municipais será apenas o controle a posteriori de constitucionalidade, o mesmo que ocorre com os Estados-Membros.
Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente federado (que caracteriza o federalismo de três níveis criado pela Constituição de 1988), por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica de municípios, ausência de poder judiciário no município) são frágeis ou inconsistentes diante da característica essencial do federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, ou seja, a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados.
O processo histórico de união de Estados soberanos não existiu no Brasil, assim como em vários Estados federais. Quanto à inexistência de representação no Senado, há Estados federais unicamerais (Venezuela), assim como há o bicameralismo em Estados unitários (França), regional (Itália), autonômico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado, na realidade, não cumpre o papel de uma casa de representação dos Estados (isto é apenas formal), mas, sim, uma casa extremamente conservadora, que, pela ausência de distinção constitucional ou infra-constitucional de competências entre as duas casas, distorce a representação popular e a simetria constitucional buscada formalmente no Senado por meio da representação igualitária (três senadores por Estado).
Quanto ao aspecto centrífugo do nosso federalismo, ele é extremamente importante para a interpretação da Constituição e rejeição de aspectos inconstitucionais presentes em recentes medidas provisórias, leis, atos de governo e até emendas inconstitucionais que tendem a abolir o federalismo ao centralizar competências, movimento contrário a lógica federal constitucional centrífuga de busca de descentralização, caminho para aperfeiçoamento do nosso modelo federal.
O nosso Estado federal surgiu a partir de um Estado unitário, criado pela Constituição de 1824. O seu processo de formação é, portanto, exatamente o inverso do norte-americano, o modelo inicial, com o qual não pode ser equiparado. A Constituição brasileira de 1891 copiou várias instituições norte-americanas, mas, como a história não pode ser copiada e o modelo norte-americano, tanto de Suprema Corte, como de presidencialismo, de bicameralismo e de federalismo são modelos históricos, a nossa cópia tem muitas diferenças do modelo original.
A visão de nosso federalismo como centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Somos um Estado federal que surgiu a partir de um Estado unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação mais democrática. A Constituição de 1891 construiu um modelo federal descentralizado (em comparação com os outros modelos federais das Constituições de 1934 e 1946 e os federalismos meramente nominais das constituições de 1937, 1967 e 1969), mas artificial, pois não houve união de Estados soberanos, mas, sim, uma divisão para se criar uma união artificial, que, por este mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras posteriores. Não se pode negar a história, mas sim trabalhar com ela para fazer evoluir o nosso Estado para modelos mais descentralizados e, logo, mais democráticos. Por isso, um federalismo de três níveis teria que surgir no Brasil para fazer avançar a democracia em um país de tradição municipalista, como ocorreu com a Constituição democrática de 1988.
A federação descentralizada de 1891 recua no grau de descen¬tralização em 1934 e 1946, sendo que, na Constituição de inspiração social-fascista de 1937, a federação foi extinta. A conexão entre autoritarismo e centralização é muito forte na nossa história. Nas Constituições de 1967 e, principalmente, de 1969 (a chamada Emenda n. 1), temos uma federação nominal, com uma descentralização quase que exclusivamente administrativa. Tivemos no Brasil no período de 1964 a 1988, uma ditadura mais sofisticada que outras ditaduras latino-americanas, pois dava-se o trabalho de eleger um novo general de quatro em quatro anos, em um sistema de eleição indireta e bipartidário.
A Constituição de 1988 restaurou a federação e a democracia, procurando avançar um novo federalismo centrífugo e de três níveis. Entretanto, apesar das inovações, o número de competências destinadas à União em detrimento dos Estados e Municípios é muito grande, fazendo com que tenhamos um dos Estados federais mais centralizados do mundo.
A compreensão do nosso federalismo como federalismo centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta e para que se exerça uma leitura constitucionalmente adequada das regras infraconstitucionais, assim como um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos e emendas inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à Constituição e, logo, restrição a qualquer ação contrária à forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar que se uma emenda centralizadora, logo, tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida nesse sentido.
Dessa forma, o reflexo desta compreensão ocorre, por exemplo, na leitura correta das limitações materiais previstas no arts. 60, § 4º, quando dispõe que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal. Alguns autores referem-se a esse dispositivo como cláusula pétrea. Não acreditamos que essa terminologia seja a mais adequada para nomear as limitações materiais do poder de reforma na atual Constituição, uma vez que não estamos nos referindo a cláusulas imutáveis, mas, sim, a cláusulas não modificáveis em certo sentido. No caso específico da vedação de emendas tendentes a abolir a forma federal, essa limitação só pode ser compreendida a partir do sentido do nosso federalismo, no caso um federalismo centrífugo.
Isso quer dizer que:

a) a art. 60 não veda emendas sobre o federalismo, mas emendas tendentes a abolir a forma federal;
b) ao vedar emendas tendentes a abolir a forma federal, no nosso caso específico, em um federalismo centrífugo, que tem um movimento constitucional em direção à descentralização, só serão permitidas emendas que venham aperfeiçoar o nosso federalismo, ou, em outras palavras, que venham a acentuar descentralização;
c) emendas que venham centralizar, em um modelo federal historicamente originário de um Estado unitário e altamente centralizado, são vedadas pela Constituição, pois tenderiam à extinção do Estado federal brasileiro. Centralizar mais o nosso modelo significa transformá-lo de fato em um Estado unitário descentralizado;
d) logo, qualquer emenda que centralize mais competência na União é inconstitucional e deve sofrer o controle de constitucionalidade;
e) finalmente, o modelo centrífugo (federalismo que tende constitucionalmente à descentralização) é princípio constitucional que se impõe não apenas ao Legislativo e ao constituinte derivado, mas também a toda a atuação dos poderes da União e, obviamente, também ao Executivo.

Podemos concluir que toda e qualquer atuação do Legislativo e do Executivo da União que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimentos direcionados aos Estados-Membros e/ou municípios, é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os Estados e municípios, pois inconstitucional.

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