quarta-feira, 22 de setembro de 2010

61 a 64 - Teoria da Constituição 10 a 13 - Poder Constituinte - Amplitude, titularidade e natureza

A TEORIA DO PODER
CONSTITUINTE

José Luiz Quadros de Magalhães


A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE


            Conforme temos trabalhado até o momento, os teóricos do Direito Constitucional são quase unânimes em afirmar que o constitucionalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215. Entretanto, ali não está presente a ideia de uma Assembleia Nacional Constituinte que, elaborando uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional, fruto da vontade de um poder soberano e baseado na vontade popular. Temos, portanto, duas realidades constitucionais que hoje parecem, lenta e gradualmente, se fundirem, mas que ainda são muito distintas.
            Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense (a partir da Constituição de 1891 copiando diversas instituições dos Estados Unidos da América, como o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de Suprema Corte e o modelo de controle difuso de constitucionalidade), nossa tradição constitucional é construída a partir do modelo continental europeu, fazendo do nosso constitucionalismo complexo e rico, pois representa uma síntese de dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de constitucionalidade das leis.
            Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial, soberano e de primeiro grau, capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida jurídica constitucional com a nova Constituição.
Vamos procurar explicar de forma sintética e em uma linguagem acessível ao maior número de pessoas, a teoria moderna (europeia e norteamericana) do poder constituinte, adotada no Brasil, para que possamos participar do debate sobre a possibilidade de uma "constituinte exclusiva" para o Brasil.

1 O PODER CONSTITUINTE


            Segundo a visão de diversos constitucionalistas, a diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados-Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembleia Nacional Constituinte sem nenhuma convocação formal.
            Na França revolucionária (1789), foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando, a partir de então, que o povo (seja diretamente ou através de uma assembleia representativa), era o titular da soberania e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se, então, que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo, a expressão da soberania popular. Ideias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma compreensão teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, mas sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte, vamos encontrar no complexo jogo de poder, por trás da constituinte, aqueles que têm a capacidade ou a possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.
            Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do poder constituinte nasceu, na cultura europeia, com SIÉYÈS, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos com poderes derivados do primeiro é contribuição deste pensador.
            Siéyès afirmava que objetivo ou o fim da assembleia representativa de uma nação (leia-se do povo, ou seja, dos que se sentem parte do Estado nacional) não pode ser outro senão aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na assembleia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de determinado grupo.1
À conclusão da escola clássica francesa compreendendo a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional, – sendo que para que isso ocorra deve ser produto de uma assembleia constituinte representativa da vontade deste povo – se opõe Hans Kelsen, que afirma que a Constituição provém de uma norma fundamental.2  Importante ressaltar, neste ponto, que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do poder constituinte: seja um poder de fato ou um poder de direito.
            Outro aspecto que devemos compreender sobre o poder constituinte é relativo à sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita à criação originária do Direito enquanto outros compreendem que esse poder constituinte é bem mais amplo, incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural,3 e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania, expressas nas competências constitucionais dos estados membros elaborarem suas constituições e os municípios suas leis orgânicas.
            Finalmente, um terceiro aspecto a ser compreendido, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do poder constituinte.
Para a melhor compreensão desta matéria, é necessário estudar separadamente cada um desses elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do poder constituinte com a sua amplitude e mesmo com sua titularidade em determinados casos.

2- A AMPLITUDE DO PODER CONSTITUINTE

            Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição, assim como aqueles que discordam, afirmando que o poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição.
            A importância dessa discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside nas fundamentações teóricas da força do poder de reforma (por meio de emenda e revisão), que chegaria no entendimento de alguns, a quase a força de uma nova constituinte, em que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareceriam. O problema central dessa discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de grande insegurança, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isso fique bem claro, e para tal enfrentamos essa questão, para posteriormente discutirmos o mais importante: os limites necessários ao poder de reforma, seja através de emendas ou seja por meio de revisão.
            Retornamos, pois, à antiga discussão para compreendermos o perigo que reside por detrás dos rótulos, teorias que, ao oferecerem muita força ao Legislativo ordinário para mudar a Constituição, podem retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, até mesmo contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria ou ditadura da maioria que, como um rolo compressor, desmonta a Constituição. Essa discussão é ainda especialmente importante quando presenciamos problemas vividos pela democracia representativa, em que o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismos de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos em detrimento de muitos, mas que se legitimam por intermédio da aparente democracia representativa.
            Importante notar que muitos dos autores clássicos, ao negarem a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, protegendo, assim, a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Essa é a questão central que nos interessa.
            Seguindo essa linha de raciocínio e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que, embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual está rompendo, esse poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
            Talvez seja necessário, neste ponto, uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos a ação da assembleia constituinte? Podemos dizer que os limites decorrentes das influências dos diversos grupos de interesses presentes numa sociedade complexa, e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte, são aqueles manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não democráticos, são decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes, mediante abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas, puramente corporativas, sobre o processo de votação na assembleia constituinte. Importante lembrar, que essas formas ilegítimas, sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista, com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a esse sistema econômico. O que resta fazer, neste sistema, é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências ilegítimas, pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ideológica (compreendendo ideologia no sentido negativo de encobrimento e distorção proposital das ideias e fatos) .

Temos então, até aqui, as seguintes conclusões:

• O poder constituinte originário é o poder de criar a Constituição e logo uma nova ordem jurídica soberana.
• Esse poder é soberano e não sofre limites no ordenamento jurídico-positivo anterior com o qual ele está rompendo.
• Embora não haja limites jurídico-positivos no ordenamento anterior, há limites de ordem social, cultural e econômico. Estes limites e condicionamentos são legítimos desde que manifestos de forma democrática e dialógica, em um processo de comunicação entre os representantes e os diversos grupos e campos de interesse presentes na sociedade e nos movimentos sociais.
• A legitimação democrática do poder constituinte originário não se esgota na eleição dos membros da assembleia nacional constituinte ou de uma possível ratificação popular da Constituição por meio de um referendo.
• Há, entretanto, pressões de pequenos grupos privilegiados (corporações, poder econômico concentrado, mídia concentrada, etc) que, de maneira diferenciada em sociedades diferentes, exercem pressão ilegítima, pois desequilibram de forma não democrática o complexo processo de construção de um texto constitucional que represente e proteja o direito de todos e grupos e pessoas existentes na sociedade, sem privilégios e sem desigualdades.
• A amplitude do poder constituinte significa o reconhecimento de outras formas de poder constituinte além do poder de criar a Constituição.
• Essas outras formas de poder constituinte seriam o poder de reforma chamado de poder constituinte derivado e o poder constituinte decorrente pertencente aos entes federados de um Estado federal, que no nosso caso são os Estados-Membros e os municípios que podem elaborar suas próprias Constituições (é correto chamar as leis orgânicas municipais de constituições).
• O poder constituinte originário é um poder soberano e sem limites no ordenamento jurídico-positivo anterior, enquanto o poder de reforma (por meio de emenda e revisão que pertence ao Congresso Nacional) e o poder constituinte dos Estados-Membros e Municípios, são sempre limitados pela força do poder originário, sendo, portanto, de segundo grau e subordinado.
• O reconhecimento do poder de reforma como poder constituinte derivado não é mera questão de rótulo, mas pode carregar a ideia de que esse poder possa ser tão amplo que seria capaz de alterar radicalmente a Constituição, trazendo, com isso, uma insegurança indesejável, pois destrói um dos elementos essenciais do constitucionalismo, que é a segurança nas relações jurídicas.
• O poder de reforma se divide em poder de revisão e de emenda, sendo que alguns juristas vêm defendendo a possibilidade, de mediante revisão, alterar-se radicalmente a Constituição, o que traz insegurança, pois fortalece muito o legislativo ordinário contra a noção de um poder que envolva amplamente a sociedade no processo excepcional de elaboração de uma Constituição.
• A democracia não se resume no simples processo de escolha de possíveis representantes, mesmo porque, em grande parte, esses representantes não representam a todos, mas, ao contrário, devido ao financiamento privado de campanha e a grande mídia concentrada nas mão de muito poucos, muitas vezes representam pequenos grupos ou a si mesmos.
• Democracia é participação, diálogo, construção conjunta de consensos, oportunidade real de construção de uma sociedade onde haja espaço para todos e para cada um. Democracia implica em ausência de privilégios e hegemonias no debate livre de ideias em busca de um consenso.
 • Como conclusão parcial, podemos dizer que, reconhecendo o caráter de poder constituinte derivado ao poder de reforma por meio de emenda e revisão, é fundamental que se ressalte o seu caráter de subordinação ao poder constituinte originário, fruto das soberania popular.
            O poder constituinte derivado, ou de reforma, portanto, divide-se em dois: o poder de emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário pertence a uma assembleia eleita com finalidade exclusiva de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função (sendo assim um poder temporário), o poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais.
            O poder de reforma por meio de emendas pode, em geral, manifestar-se a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e, algumas vezes, temporais. Esse poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.
            O poder de revisão, em geral, tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação deste poder uma única vez, não podendo ocorrer de novo, pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A revisão é mais ampla que a emenda, pois, como sugere o nome, trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites previstos na Constituição. No Brasil, entretanto, a nossa revisão foi atípica, manifestando-se por meio de emendas. Entretanto, bem ou malfeita, o que ocorreu foi uma revisão, pois se deu respeitando os aspectos formais processuais da revisão prevista no ADCT. 
            Devemos, pois, compreender o poder de reforma por meio de emendas e revisão e os seus limites, materiais, circunstanciais, formais e temporais. Quanto aos limites, podemos dizer o seguinte:
• Os limites materiais dizem respeito às matérias que não podem ser objeto expresso ou implícitos de emenda.
• Os limites materiais implícitos dizem respeito à própria essência do poder de reforma. Mesmo que não haja limites expressos, a segurança jurídica exige que o poder de reforma não se transforme, por falta de limites materiais, em um poder originário. O poder de reforma pode modificar o texto, mantendo a essência da Constituição, ou seja, os princípios fundamentais e estruturantes da Constituição, pois reforma não é construir outro, mas modificar mantendo a estrutura e os fundamentos.
• São limites materiais implícitos o respeito aos princípios fundamentais e estruturais da Constituição, que só poderão ser modificados por intermédio de outra assembleia constituinte, ou seja, de outro poder constituinte originário. Este poder constituinte originário surge, apenas, diante de uma força social maior que o próprio ordenamento jurídico. É o reconhecimento pela teoria da constituição da possibilidade de revolução, da possibilidade legitima de ruptura popular.
• O art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF trazem os limites materiais expressos, dispondo que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação de poderes e a democracia.
• Considerando a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, podemos afirmar que não pode haver emendas que venham, de alguma forma, limitar os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos fundamentais.
• Pode haver emendas sobre a separação de poderes, a democracia, os direitos individuais e suas garantias (os direitos fundamentais ou os direitos humanos em uma perspectiva constitucional) e o federalismo, desde que sejam para aperfeiçoar, jamais para restringir.
• A proteção ao federalismo significa a proteção ao processo de descentralização essencial ao nosso federalismo centrífugo. Em outras palavras, podem existir emendas para fortalecer os estados e municípios, jamais para enfraquecê-los.
• além dos limites materiais expressos no art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF 88, encontramos limites circunstanciais que proíbem emendas ou revisão durante situações de grave comprometimento da estabilidade democrática, como Estado de sitio, Estado de defesa e intervenção federal.
• Como afirmado acima, há limites materiais implícitos que representam a própria essência do poder constituinte derivado.
• O poder de reforma, como o nome sugere, diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica, pois não é possível, por meio de emenda ou revisão, alterar os princípios fundamentais ou estruturais de uma ordem constitucional.
• Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência da Constituição e mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada.
• Reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas, jamais, a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.
• Reforma não significa a construção de novo.
• Outro limite óbvio implícito diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento ao poder constituinte de reforma;
• Essas regras não podem ser objeto de emenda.
• As regras de funcionamento do poder constituinte derivado, o poder de reforma, por motivos óbvios, não podem ser objeto de emenda ou revisão, pois, caso contrario estaríamos condenados à mais absoluta insegurança jurídica.
• Alem disso, é limite ao poder de reforma a proibição de revisão antes de cinco anos contados da promulgação da Constituição (limite temporal).
• A proibição do funcionamento do poder de reforma (emendas ou revisão) durante Estado de defesa, Estado de sítio ou intervenção federal constitui limites circunstanciais como já mencionado.
• Os limites formais obrigam que a emenda se dê mediante quorum de três quintos em dois turnos de votação em seção bicameral, enquanto a revisão (contrariando a lógica doutrinaria que exigia processo mais qualificado) ocorreu em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os representantes).
• Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não havendo limites temporais para a reforma por meio de emendas;

            Essa discussão não é nova e encontramos nos clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeiro várias referências à amplitude do poder constituinte e do poder de reforma.
            A ideia essencial expressa até agora é que poder reformador está abaixo do poder constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar esse poder reformador, seja de poder constituinte constituído, como o faz Sanches Agesta; poder constituinte derivado, como o faz Pelayo e Baracho; ou poder constituinte instituído, segundo Burdeau – devemos encará-lo, como o faz Pontes de Miranda e Rosah Russomano, como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau.
            Outro aspecto referente à amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados-Membros e municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, Tomo II, as características principais do Estado federal. Deixamos claro que o que difere o Estado federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, em que o ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário a intervenção ou a aprovação dessa Constituição por outra esfera de poder federal. Isso caracteriza a essência da federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (união, estados-membros e municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal, nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte decorrente.
            Não estamos afirmando que os estados-membros, a união e os municípios são soberanos, pois soberano é o Estado federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no poder constituinte originário. O que afirmamos é que no Estado federal, além da repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também – e isso só ocorre no Estado Federal – a repartição de competências legislativas constitucionais. Essa repartição de competências constitucionais implica a participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.
            Entretanto, esse poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, por esse motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. A Constituição de 1988 estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados-Membros) e de terceiro grau (se dos municípios), subordinados à vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal. A repartição de competências no nosso Estado federal ocorre da seguinte forma:
• O Estado federal é composto de três círculos não hierarquizados: União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios.
• A Constituição Federal é a manifestação integral da soberania do Estado Federal.
• A União detém competências legislativas ordinárias, administrativas, jurisdicionais e o poder constituinte derivado de reforma por meio de emendas e revisão à Constituição do Estado Federal, por intermédio do Legislativo da União (O Congresso Nacional).
• Os Estados-Membros detêm competências legislativas ordinárias, judiciais, administrativas e o poder constituinte decorrente de elaborar suas próprias constituições, além é claro, do poder de reforma de suas constituições.
• Os municípios detêm competências legislativas ordinárias, administrativas (não detêm competências judiciais) e competências legislativas constitucionais, ou seja, o poder constituinte decorrente de elaborar suas Constituições (chamadas de leis orgânicas) e lógico o poder derivado de reforma de suas Constituições.
• O Distrito Federal também se tornou ente federado a partir de 1988, mas com características diferenciadas. Detém competências legislativas ordinárias e administrativas, que podem ser organizadas pelo seu poder constituinte decorrente (competência legislativa constitucional própria), e possui o seu próprio Judiciário e Ministério Público que, entretanto, não poderão ser organizados por sua constituinte, mas serão organizados pela União para o Distrito Federal, por razão de segurança nacional. Detém, também, é claro, o poder de reformar sua Constituição (chamada também de Lei Orgânica), o que não muda a sua natureza de poder constituinte decorrente, portanto, de Constituição.
            Quanto aos limites do poder constituinte decorrente, são encontrados em vários momentos na Constituição Federal e são limites materiais expressos e implícitos. Os limites expressos ocorrem sempre que a Constituição distribui competências e normatiza condutas dos entes federados. Quanto aos limites implícitos, esses são os princípios estruturantes e fundamentais da República que se impõem a todos os entes federados, como a democracia, a separação de poderes, os direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e regionais, a dignidade humana, dentre outros.
            Alguns entendem que a Constituição Federal deve ser quase que copiada pelos entes federados, o que no nosso entendimento é antifederal. Se a Constituição federal, expressamente, não mencionou mandamentos aos entes federados, está livre o constituinte dos Estados e Municípios para dispor, desde que respeitados os princípios que estruturam e fundamentam a ordem constitucional federal. Por exemplo, se a Constituição Federal prevê o quorum de três quintos em dois turnos para emenda à Constituição Federal como norma regulamentadora do funcionamento do poder constituinte derivado federal, nada impede que o Estado-Membro ou o Município estabeleçam quorum diferente, desde que respeitados o princípio da rigidez constitucional que caracteriza sua supremacia em relação às leis ordinárias e complementares e o princípio da separação de poderes.
3 - A NATUREZA DO PODER CONSTITUINTE

            Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sinônimo de lei positiva posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente nesse ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o direito nessa perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o direito a regra, transformando construção do direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto. Entretanto, isso será objeto de estudo em outro momento. O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato (poder político democrático), capaz de romper com a ordem vigente e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação à ordem com a qual rompe e pela qual não se limita. Essa afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, pois é o poder de transformação social da própria história. Nesse recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional que afete seus princípios fundamentais, criando, na verdade, uma nova Constituição. Esses mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica que, como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar, entretanto, que esses milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas, neste caso, devemos estar atentos à manipulação da propaganda, da grande mídia, do poder econômico, na construção de uma falsa vontade popular. Por isso nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.
            Retornando à discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que se entendermos, entretanto, que o direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a ideia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do direito natural. Nesse sentido, o direito é sinônimo de justo e, logo, a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum, nas várias teorias, é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo essa hipótese, o poder constituinte originário será um poder de direito se representar o justo, o correto, o direito, e, ao contrário, será mero poder de fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a ideia do justo, do correto, do direito.
            Não nos filiamos ao pensamento do direito natural por o considerarmos elitista e ideológico no sentido negativo do termo (uma vez que trata uma ciência social como se fosse uma ciência natural). Ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete dessa vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo?
            Por esse motivo, entendemos que só processos democráticos dialógicos, com ampla mobilização popular, podem justificar uma ruptura que, sendo fato irresistível, se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O direito não se encontra apenas no texto positivado ou na decisão judicial, mas latente na ideia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será essa compreensão dialogicamente compartilhada, em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o direito, sua compreensão democrática e sua transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.
            Portanto, podemos concluir que esse poder de fato será também de direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate igualitário, sem hegemonias ou desigualdades, dos mais variados interesses e valores existentes na sociedade e expressos pelos movimentos sociais.


4- A TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

            Acreditamos que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder constituinte já ficou clara no tópico anterior. Entretanto, devemos responder à pergunta sobre quem é o titular desse poder nas suas várias manifestações históricas.
            Retornando à visão (talvez um pouco romântica) dos “clássicos” da teoria constitucional, encontramos no revolucionário Siéyes a afirmação de que “a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei”. Uma visão idealista perigosa utilizada em outros momentos da história moderna, como por exemplo, Hitler e a construção teória nazista de nação, estado, constituição e poder. Podemos perceber, mesmo que a construção conceitual da ideia de nação para Siéyès constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. A ideia de nação é uma construção histórica recente, e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do próprio absolutismo. É uma construção uniformizadora, radicalmente excludente, negando a diversidade, ocultada pelo estado-nação construído nos últimos quinhentos anos.
            No Direito Constitucional brasileiro, um autor importante é Pinto Ferreira, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa as expressões “Convenção Constitucional”, “Assembleia Constituinte” e “Convenção Nacional Constituinte”, afirma que a Assembleia Nacional Constituinte é o corpo representativo escolhido para criar a Constituição. Para o autor, há dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo, no qual há uma assembleia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, não havendo necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, no qual a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular por meio do referendo. Para o autor, esse segundo modelo está mais próximo do espírito democrático.
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Dessa forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, em que o titular é um rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais. Constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto, encontramos também exemplos que poderes constituintes que, de forma diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas das pessoas.
            Não há dúvida de que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão dos diversos grupos sociais, movimentos sociais e pessoas.

            Esse poder será democrático à medida que o processo constituinte serve como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, as manifestações do jogo de forças sociais sejam legitimamente exercidas. É fundamental, para isso, que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica, seja minado, controlado, ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor à vontade presente nas ruas e no campo.
            

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