segunda-feira, 11 de outubro de 2010

76- Teoria da Constituição 24 - parecer viaduto Silva Lobo

6 CASOS BRASILEIROS: A APLICAÇÃO DO DISCUTIDO

PARECER 1

Consulentes: Moradores do Viaduto Silva Lobo
Interessados: Pastoral de Rua e Programas Pólos Reprodutores de Cidadania
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães

PRESSUPOSTOS FÁTICOS E TEÓRICOS:
O CASO E SEU CONTEXTO

1. A questão da moradia tem sido um problema que se agrava a cada ano, acompanhando o processo crescente de exclusão social, fruto de modelo econômico neoliberal de desregulamentação de mercados, privatizações e empobrecimento do Estado, o que tem favorecido o processo, hoje global, de concentração econômica. Importante notar que, com o processo de concentração econômica e o fortalecimento das corporações, um modelo econômico que valorize o ser humano, a geração de empregos dignos e a geração de oportunidades iguais se torna mais distante. Com o fortalecimento do poder econômico privado e o enfraquecimento do Estado, o Estado Social, que apresentou no seu início uma alternativa de assistencialismo para depois significar a possibilidade de inclusão em alguns países, também entra em crise, para alguns quase irreversível, principalmente pelas armadilhas que representam as constantes renúncias fiscais e modelos tributários que, no lugar de tributar quem pode pagar, isentam o grande capital e tributam o assalariado, o pequeno e médio empreendedor, justamente os setores que mais geram empregos. Quase todos os países que adotaram esse modelo a partir da década de 1980, hoje, buscam abandoná-lo, o que, no entanto, não é fácil.

2. Este é o pano de fundo de que administradores públicos, legisladores e magistrados não podem se esquecer quando constroem normas, que devem ser justas e só podem ser se partirem do caso concreto, levando em consideração, obviamente, o contexto histórico e socioeconômico em que ocorrem os fatos e compreendendo o Direito como um sistema de princípios e regras integral, portanto coerente. Não é possível construir uma solução justa sem compreender o contexto e sem manter a unidade e a coerência do sistema jurídico. Não pode o intérprete, bem como todos que seguem a ordem jurídica, achar que o Direito é mera receita de bolo na qual se aplica a lei esquecendo-se todo o seu entorno, seja jurídico seja histórico, bem como de sua finalidade e coerência. E, quando menciono que todos os acima citados constroem normas, quero dizer que a norma surge da interpretação, e a interpretação é inevitável, pois quando lemos a norma para aplicá-la ao caso concreto, inevitavelmente, a interpretamos. Essa idéia da hermenêutica pós-positivista é fundamental para a correta idéia de jurisdição constitucional e será o fundamento teórico da única solução justa que o caso comporta. Vamos, portanto, ao caso concreto.

3. Sob o viaduto Silva Lobo, em área de domínio público (Belo Horizonte), moram catadores de papel, lavadeiras, faxineiras, carroceiros, desempregados, seres humanos que exerceram durante sua vida de exclusão atividades as mais variadas, alguns deles há mais de quatorze anos. Para essas pessoas, foram negados quase todos os direitos fundamentais previstos na Constituição, como trabalho, saúde, educação, moradia, justa remuneração, pressupostos básicos para o exercício das liberdades públicas e individuais, uma vez que não há liberdade concreta sem meios para seu exercício, e os meios de exercício das liberdades são os direitos sociais e econômicos.

4. Essas pessoas, como muitas outras em nosso país, nos grandes centros urbanos, além de vitimas da exclusão, foram vítimas das violências do Poder Público, muitas delas em nome do interesse público. Inexplicavelmente, perante a lógica constitucional, essas pessoas as quais tudo foi negado ainda recebem a intolerância de quem diz agir em nome do Direito. De outro lado, muitas vezes receberam também políticas assistencialistas ineficazes, humilhação final, principalmente quando para recebê-las são obrigados a fazer o que não querem. Nesse momento, a última liberdade que lhes resta é arrancada: a liberdade de escolher se querem ou não continuar na rua.

5. Uma política pública para a população de rua que leve em consideração os direitos constitucionais não pode ser resumir ao assistencialismo, e isso implica a necessidade de dar voz a essas pessoas. Elas precisam mais do que voz, precisam ser parte na construção da solução do seu problema. De nada adianta removê-las do local onde se encontram e onde construíram seu referencial de vida, onde seus filhos freqüentam a escola e onde conseguem algum sustento para o alimento, oferecendo um terreno longe ou oferecendo-lhes dinheiro para o aluguel. Trata-se de simplificação que retira dessas pessoas o seu último direito, destruindo de vez sua dignidade que ainda pode sobreviver nas últimas escolhas que conservaram.

6. Os moradores do viaduto Silva Lobo, juntamente com organizações da sociedade civil, buscaram a solução para o seu problema. Trata-se de uma solução pública, encontrada de forma dialógica e, portanto, democrática. Com base em projeto concebido com a participação dos moradores, da Escola de Arquitetura da UFMG, do programa Pólos Reprodutores de Cidadania e da Pastoral de Rua, apresentaram proposta para ordenação daquele espaço urbano com a construção de habitações, uma cozinha coletiva e espaço para cuidar de animais.

7. O Município, representado pelo Secretário da Coordenação de Política Urbana e Ambiental, Murilo Valadares, inicialmente aceitou a idéia, segundo depoimento dos consulentes, prometendo, ainda, a doação de material para a edificação. Entretanto, como a doação não ocorreu a Pastoral de Rua, providenciou algum material de construção, iniciando-se a obra descrita no item anterior.

8. Agora, sem nenhuma explicação, o Município ameaçou destruir as construções iniciadas no local, sob o viaduto, sendo que recentemente ocorreu uma visita de agentes da Prefeitura e da Polícia Militar para a destruição da moradia dessas pessoas. Segundo a Constituição, esse espaço é o asilo inviolável dessas pessoas, sendo, portanto, essa ação da Prefeitura e da Polícia flagrantemente contrária ao ordenamento jurídico e, conseqüentemente, contra lei e a Constituição.

9. Depois de novas negociações, os representantes do povo do Município no Poder Executivo se mostraram dispostos a conversar, desde que recebessem formalmente o projeto arquitetônico e apresentassem uma avaliação jurídica bem fundamentada, para que então possam construir sem violar a Constituição e as leis, ou seja, o sistema normativo vigente.

10. Importante verificar que no local, entre os moradores do viaduto Silva Lobo, não há casos de violência ou qualquer outro tipo de crimes, bem como de consumo ou tráfico de drogas ou de pequenos furtos.

11. Finalmente, é necessário acrescentar que há na moradia sob o viaduto água ligada pela Copasa e os Correios forneceram o número do CEP.

SOLUÇÃO JURÍDICA
CONSTITUCIONALMENTE POSSÍVEL

1. O segundo passo para solucionar o caso, descritos os fatos e assentadas as bases teóricas e o pano de fundo histórico, é o de verificar quais princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais regulam a situação e deverão ser observados quando da construção da norma de conduta justa para o caso.

2. No plano constitucional, encontramos vários princípios que regulam o caso e são, obviamente, de observância obrigatória. É importante lembrar que, hoje, nenhum doutrinador sério, no Brasil e no mundo, nega o caráter normativo dos princípios e sua supremacia perante as regras constitucionais e infraconstitucionais, e isso se reflete na jurisprudência dos tribunais.

3. Os princípios constitucionais de observância obrigatória e que regulam o caso são os seguintes:

a) dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III);
b) construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo da República e, portanto, de todos os poderes públicos (art. 3º, I);
c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III) (art. 170, VII);
d) promover o bem de todos sem qualquer preconceito ou discriminação (art. 3º, IV);
e) proibição de tratamento desumano e degradante (art. 5º, III);
f) inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI);
g) inviolabilidade da intimidade, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X);
h) a função social de toda e qualquer forma de propriedade (art. 5º, XXIII), (art. 170, III);
i) o amparo às crianças e adolescentes carentes e a promoção da integração ao mercado de trabalho (art. 203, II e III);
j) política urbana que ordene o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garanta o bem-estar de seus habitantes (art. 182).

4. As regras constitucionais que regulam o caso são as seguintes:

a) A Constituição Federal estabelece a competência administrativa comum da União dos Estados e dos Municípios para zelar pela guarda e observância da Lei Maior;
b) combater a pobreza e os fatores de marginalização promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
c) promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, I, IX e X).

5. É fundamental lembrar que a ordem jurídica não pode ser parcialmente observada, tampouco pode o intérprete escolher os princípios ou regras que mais lhe agradem, abandonando outros que não se ajustem ao seu desejo.

6. Importante lembrar também que a diferença entre regra e prin¬cípio, segundo a doutrina atual, está centrada em dois aspectos principais:

a) a regra tem um enunciado mais detalhado e específico para uma situação, enquanto o princípio tem um enunciado genérico;
b) a regra, portanto, se aplica a uma situação específica, enquanto o princípio tende a ser aplicado a todas as situações, pois seu grau de abrangência no ordenamento jurídico é bem maior (ex: princípio da igualdade, liberdade, soberania, dignidade devem, entre outros, ser permanentemente observados);
c) em caso de conflitos de regras, uma anula a outra (a lei no tempo e espaço, a hierarquia das leis); já no caso de conflito entre princípios a solução só é encontrada no caso concreto, não havendo revogação de um pelo outro, mas o afastamento do princípio, que, se aplicado, comprometerá a integridade e, portanto, a coerência do sistema. O afastamento desse princípio não implica sua revogação; ele continua válido e aplicável a todas as outras situações;
d) no caso de conflito entre regras e princípios, esses se sobrepõem às regras sem, necessariamente implicar na revogação destas.

7. Isso posto, temos que o caso em análise, ao ser solucionado, tem que levar em consideração a obrigatória observância de todos os princípios constitucionais, mesmo que isso implique o afastamento ou a não-aplicação de uma regra que, diante do caso, se fosse aplicada, poderia contrariar um ou mais princípios.

8. Postas as bases constitucionais e hermenêuticas, devemos trazer essas reflexões para a realidade do caso antes de analisarmos finalmente a legislação infraconstitucional.

9. Temos, portanto, que as pessoas que hoje habitam sob o viaduto Silva Lobo são amparadas pela Constituição e têm direitos perante o Estado, seja em nível federal, estadual e municipal, e por terem negados direitos básicos e fundamentais recebem atenção especial da Constituição no sentido de criação de políticas públicas includentes.

10. Essas políticas, quando elaboradas, devem respeitar as regras e princípios constitucionais e infraconstitucionais simultaneamente. Levando em consideração os princípios e regras acima enumerados, podemos concluir, por exemplo, que a única hipótese de retirar essas pessoas do local é oferecendo-lhe outro local para moradia onde possam conseguir sustento igual ou melhor, onde as crianças possam freqüentar escola igual ou melhor e desde que a solução seja uma solução dialógica em que seja respeitada a vontade, a opinião e, logo, a dignidade das pessoas envolvidas. Políticas meramente assistencialistas que tratam as pessoas como objetos sem vontade não tem amparo nos fundamentos do Estado Democrático de Direito que a Constituição cria.

11. Podemos concluir, parcialmente, que se houvesse regra infraconstitucional que autorizasse a retirada imediata dessas pessoas do local, essa regra deveria ter sua aplicação afastada, só podendo ser observada quando satisfeitas as exigências dos princípios constitucionais obrigatórios acima citados. A solução justa expressa na norma de conduta da Prefeitura deverá ser construída observando a integridade do sistema jurídico constitucional e a sua coerência.

12. Passando à análise da legislação infraconstitucional, devemos encontrar a resposta para uma última pergunta final, já claramente respondida no parecer da Dra. Liana Portilho Mattos: o Município pode permitir o levantamento de construções no local?

13. Para responder a essa questão, é necessária a análise da legislação infraconstitucional, que deve ser interpretada observando-se os princípios e regras que integram o sistema jurídico constitucional em um sistema coerente e com finalidade clara.

14. Como já analisado pela Dra. Liana Portilho, e por esse motivo não vou repetir, a questão deve começar a ser respondida pelo Estatuto da Cidade, presente na Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. O Estatuto, nos seus objetivos e finalidades, já facilita a fundamentação da resposta positiva da pergunta quando oferece ao Município instrumentos para a implementação de políticas urbanas que levem em conta os princípios nele contidos e que consagram o direito à cidade, ao desenvolvimento sustentável, à gestão democrática da cidade, à justa distribuição dos benefícios e do ônus decorrentes da urbanização e a garantia da posse de milhares de indivíduos cujo acesso ao solo urbano e à moradia é obtido informalmente, num habitat autoconstruído, vulnerável, precário e inseguro.(cito o parecer da Dra Liana Portilho).

15. A Medida Provisória n. 2.220 de 4 de setembro de 2001, oferece a garantia da posse de imóvel público para aquelas pessoas que até 30 de junho de 2001 possuiu como seu, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, até 250 metros quadrados de imóvel público situado em área urbana para moradia, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural. Importante notar que a medida provisória não faz nenhuma distinção quanto ao tipo de imóvel, o que é óbvio diante do objetivo da norma e da realidade da moradia nos grandes centros urbanos.

16. O art. 5º da referida Medida Provisória reforça o que dito quando faculta ao Poder Público assegurar o exercício do direito a concessão de uso especial para fins de moradia quando se tratar de ocupação de imóvel de uso comum do povo. Esse dispositivo confirma a possibilidade de aplicação dos arts. 1º e 2º da Medida Provisória n. 2.220/2001, ao caso que estudamos. Por outro lado, autoriza a negociação de outro local nesse caso. Para essa situação aplica-se o que foi estudado neste parecer no que diz respeito à integridade e à coerência do sistema de princípios do nosso sistema jurídico constitucional, ou seja, o Município só poderá retirar essas pessoas respeitados os princípios constitucionais conforme mencionamos no item 11 desse parecer, acrescentando que não há nenhum motivo para a agressão da destruição da moradia em processo de construção, uma vez que não há criminalidade no local, não há drogas, não há, enfim, nenhum prejuízo ou comprometimento de nenhum direito dos cidadãos da cidade de Belo Horizonte que fundamente a retirada daquelas pessoas. Aliás, são fartas as motivações de sua permanência.


CONCLUSÃO

Diante de toda a argumentação aqui desenvolvida, posso concluir com tranqüilidade que:

a) os moradores do Viaduto Silva Lobo não podem ser simplesmente retirados de seu domicílio inviolável (sua moradia) por ser ato atentatório a diversas normas constitucionais;
b) na hipótese de aplicação do art. 3º da Medida Provisória n. 2.220/2001, só poderão ser retirados com a concordância de todos os moradores e desde que oferecida condição de renda e sobrevivência, educação e moradia igual ou superior;
c) é possível, diante da Constituição, do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2.220/2001, o Município autorizar a construção e a habitação do local sob o Viaduto Silva Lobo. Aliás, não é só possível, mas é a única conduta constitucional e legal a ser adotada neste momento;
d) finalmente, não reconhecendo o Município o direito ao título de concessão de uso especial aos moradores, esse direito poderá ser reconhecido pelo Poder Judiciário, com a responsabilização do Município em caso de ação administrativa precipitada e inconstitucional.

Belo Horizonte, 15 de abril de 2002.

JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
Professor Doutor em Direito Constitucional
UFMG - PUC-MG

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