sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

109- Teoria da Constituição 29

7.2.1 A submissão do Judiciário e do
Direito aos falsos imperativos econômicos

Jose Luiz Quadros de Magalhães

Um dos fundamentos dessa opção está no argumento de alguns defensores de uma ordem econômica conservadora, que exige estabilidade e previsibilidade nas decisões judiciais. Assistimos, mais uma vez, à perigosa submissão do Judiciário às imposições do modelo econômico adotado na década de 1990 no Brasil.
Esse modelo conservador tem como pano de fundo ideológico, que começou a ser construído a partir da década de 1970, a criação da ideologia do fim da história, pelo menos na área econômica,9 em que se coloca o modelo econômico neoconservador (chamado para efeito de marketing de neoliberal) como o grande modelo vitorioso, o único modelo possível, discurso este que veio ser fortalecido com o fim da União Soviética e simbolicamente com a queda do muro de Berlim.
A idéia que se constrói a partir de então é de que a economia é uma ciência que mostra respostas técnicas exatas aos problemas diários de produção, consumo, emprego, desenvolvimento, inflação, tecnologia e bem-estar, e, sendo esse discurso técnico-científico quase matemático, não podem os políticos e os juristas se insurgirem contra ele. Ora, a grande conquista do século XX consistiu na construção do Estado de Bem-Estar Social, que surge como resposta à miséria e à crise gerada pelo liberalismo atacado pelo capital conservador. O Estado de Bem-Estar Social, fundado na democracia representativa e na garantia de direitos sociais, individuais, políticos e econômicos, tinha (ou tem, pois, embora em crise, ainda existe, e em alguns casos até se fortalece) como principal característica a existência de uma Constituição que deve conter uma ordem econômica que se submeta aos imperativos de justiça social e econômica. Logo, temos a economia (que é uma ciência social) se subordinando aos imperativos do Direito e da Política. Essa lógica do Estado Social decorre do pensamento de esquerda dos Séculos XIX e XX e que sustenta, com mudanças mais radicais, o pensamento socialista nos Estados Socialistas, no século XX, que buscaram justamente um novo modelo econômico capaz de eliminar as desigualdades socioeconômicas, levando justiça, emprego, saúde, educação e, portanto, bem-estar a todos.
Com a ascensão dos neoconservadores ao poder (1980 com Reagan, Tatcher e Kohl como suas maiores expressões), afirma-se o discurso único econômico e transforma-se a economia, para o senso comum, em uma ciência exata, por intermédio de maciça propaganda na grande mídia. Agora a economia é uma questão técnica e seus problemas devem ser resolvidos por técnicos, e não por políticos ou juristas. Existe um modelo técnico infalível, que garante o sucesso (vejam os Estados Unidos e vejam o fim da União Soviética, diziam repetidamente em nossa cabeça), e todos devem adotá-lo. O falso discurso batido em nossa cabeça durante mais de vinte anos diariamente nos diz que “não devemos permitir que os políticos e os juristas atrapalhem a construção de um modelo econômico de sucesso, pois este modelo trará riquezas, desenvolvimento, com acesso a toda a parafernália tecnológica, com carros que falam e celulares que tiram fotos e passam filmes, nos fazendo felizes”.
No momento em que aceitamos a mentira de que a economia não pode ser subordinada ao Direito e seus imperativos de justiça social e econômica, e logo à política, que produz o Direito na instância parlamentar, desautorizamos a democracia, que agora nada pode diante dos (pseudo) imperativos econômicos. Desautorizamos o Direito (que não deve regulamentar a economia) e a política (feita por não técnicos). Desautorizamos o Poder Judiciário, que deve se submeter aos falsos imperativos econômicos.
Assistimos ao comprometimento da democracia, quando governos eleitos se abstêm de modificar o modelo econômico; assistimos ao comprometimento ou ao suicídio da esquerda, que ao chegar ao poder mantém os mesmos modelos econômicos conservadores excludentes. Ora, se a esquerda não mais representa uma alternativa econômica no poder, não há mais esquerda, mas, sim, um grupo de homens que se dizem bons e bem-intencionados, geralmente honestos e sensíveis, que infelizmente não podem fazer nada para mudar o perverso quadro que nos cerca, decorrente de um modelo econômico não menos perverso, mas complexo e poderoso. Enfim assistimos também ao comprometimento do Estado de Direito, quando os juízes e tribunais não aplicam a lei e a Constituição pois estas podem comprometer a estabilidade econômica.
Essa séria situação pode ser retratada por dois episódios recentes ocorridos na Itália e na França. Na Itália, após a primeira experiência de dois anos de um governo neofascista de Berlusconi, os italianos escolheram uma aliança de centro-esquerda para governá-los. Esperavam mudanças, principalmente no modelo econômico excludente. Veio o governo Prodi, que nada mudou substancialmente, seguido do governo Massimo Dalema, este com grande alarde da imprensa mundial, pois tratava-se de um ex-comunista no poder. Entretanto, novamente não ocorreram mudanças econômicas. O desencanto com a política fez com que o eleitorado de centro-esquerda, em boa parte, se abstivesse nas eleições seguintes, o que permitiu o retorno do projeto neofascista, autoritário e corrupto com Berlusconi. Na França um fenômeno semelhante. Depois de um governo de direita conservador, que começou a privatizar empresas, permitindo a concentração de riquezas e a eliminação de postos de trabalhos (Jupé e Chirac), os franceses escolheram uma maioria de esquerda para governá-los, maioria parlamentar que impôs ao Presidente conservador (Chirac) a escolha de um Primeiro-Ministro socialista, com apoio do parlamento (Jospin). Com Jospin e os socialistas no poder, entretanto, não houve grandes mudanças, sendo que o modelo econômico de privatização pouco mudou. Mudou o ritmo, mudou o discurso (em parte, pois Jospin fez por vezes um discurso de direito penal e de polícia típico da direita), mas a política econômica, substancialmente, continuou a mesma. Findo quatro anos como Primeiro-Ministro, Jospin se candidata a Presidente da República e sequer consegue ir para o segundo turno, perdendo para o fascista Le Pen e para Chirac, que se candidatou para a reeleição10. O que aconteceu foi que o eleitorado de centro-esquerda, mais politizado, recusou-se a votar, desencantado com a ausência de uma política de esquerda na área econômica, cedendo espaço à direita, e como em todo o momento de crise, para os fascistas que apelam para um discurso emocional fácil, fundado no carisma pessoal de um líder e em apelos racistas simplificadores como explicação dos problemas.
Esse é o quadro de uma democracia representativa em crise em boa parte do mundo. Quadro este perigoso pois leva ao descrédito a política, e logo a democracia, e o Direito, e logo o Estado de Direito e tudo o que isto representa: a Constituição como limitadora do poder e dos Direitos Humanos como garantia de dignidade. O nó da questão consiste na transformação da economia em um espaço para técnicos, onde a política e o Direito não entram. É fundamental desconstruir esta ideologia para que visualizemos os problemas concretos: a) o antagonismo vertical entre capitalismo conservador e a possibilidade de dignidade e inclusão; b) o antagonismo vertical entre fundamentalismo religioso cristão conservador11 que sustenta ideologicamente o projeto econômico conservador e a tolerância, a diversidade horizontal12 e a democracia; c) finalmente visualizar com clareza a manipulação ideológica das massas pelo meios de comunicação em mãos do capital conservador ou a serviço deste.13
Slavoj Zizek, um dos importantes interlocutores sobre o debate do pensamento político da esquerda contemporânea, nos lembra que não devemos embarcar no convite da direita conservadora, que nos diz que devemos simplesmente escolher um dos dois lados na guerra contra o terrorismo. Há vários lados, e o mundo é extremamente mais complexo do que o maniqueísmo simplificador do pensamento fundamentalista conservador. Segundo Zizek, “quando as escolhas são muito claras a ideologia se encontra em seu estado mais puro e as verdadeiras alternativas se tornam obscuras”. A democracia liberal não é a alternativa ao fundamentalismo.
Não devemos abandonar a busca por uma sociedade justa e democrática, e isso implica também a existência de um Poder Judiciário independente e fiel à defesa do Estado de Direito e da democracia, fiel, portanto, à Constituição, inclusive aos seus mandamentos econômicos de repartição de riqueza e valorização das formas de ganho com trabalho.