domingo, 5 de dezembro de 2010

122- Artigos - Tribunal de Contas como integrante de um poder de fiscalização - por José Luiz Quadros de Magalhães

A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES E A DIVISÃO DAS FUNÇÕES AUTÔNOMAS NO ESTADO CONTEMPORÂNEO -
O TRIBUNAL DE CONTAS COMO INTEGRANTE DE UM PODER AUTÔNOMO DE FISCALIZAÇÃO

JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
PROFESSOR DOUTOR (PUC-MG; UNIPAC E UFMG)


O constitucionalismo moderno se afirma com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; em Estados Unidos, em 1776, e na Franca em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, pois isto não e verdade, mas nela já estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo: limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana.
Podemos dizer que, desde então, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu tipo, liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas estes dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas que declaram e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da pessoa humana. O que muda de Constituição para Constituição é a forma de tratamento constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de limitação ao poder do Estado, a forma como o poder do Estado está organizado e os meios existentes de participação popular e de respeito à liberdade de imprensa, de consciência e de expressão, o respeito às minorias e a diversidade cultural e étnica (regime e sistema político), a forma de distribuição de competência e de organização do território do Estado (forma de Estado), a relação entre os poderes do Estado (sistema de governo) e os Direitos fundamentais declarados e garantidos pela Constituição (tipo de Estado).
O Estado moderno, na sua primeira versão absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante os impérios e a igreja (soberania externa) e perante os senhores feudais (nobres) que fragmentavam o poder do Estado, cada um possuindo seu próprio exército e poder quase soberano sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre os impérios e a Igreja, de um lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado, são a base para o surgimento do Estado moderno, que é um Estado territorial, nacional, monárquico, centralizador de todos os poderes e soberano em duas dimensões, a externa e a interna.1
O Estado nacional é uma construção histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e desse único exército. A criação dos Estados nacionais como Espanha e França é um exercício de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma comum, uma religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse Estado que os faça se sentirem parte da vontade nacional, parte do Estado nacional. O sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental para sua formação e permanência.
Entretanto esse Estado absoluto cresce demais e elimina cada vez mais a individualidade (o liberalismo não inventa o indivíduo, reinventa-o), eliminando a vontade individual. É nesse contexto que o pensamento liberal surge e as revoluções liberais ocorrem. Elas representam um resgate da liberdade perdida há muito tempo, uma vez que a opressão do Estado absoluto tornou insuportável a continuidade da convivência com a falta dessa liberdade. O Estado liberal não inventa o individuo, ele sistematiza e ideologiza o individualismo, mas, acima de tudo, o Estado liberal representa a vitória da burguesia, e logo a vitória dos interesses desta classe. Quanto ao povo, resta o discurso de liberdade, em que muitos ainda acreditam hoje. Resta a liberdade liberal do sonho da riqueza por meio do trabalho ou, melhor dizendo, da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”.
A essência do constitucionalismo liberal no seu momento inicial é, portanto, a segurança nas relações jurídicas e a proteção do individuo contra o Estado. Não há uma conexão entre consti¬tucionalismo e democracia. Se a democracia é hoje elemento essencial para o constitucionalismo, no inicio do constitucio¬nalis¬mo liberal ela parecia incompatível com a essência deste. Como combinar a proteção da vontade de um com a democracia majoritária em que prevalece a vontade da maioria?
A junção entre democracia e constitucionalismo liberal ocorre na segunda fase do Estado liberal, que estudamos no nosso curso de Direito Constitucional, tomo I e II . A idéia de que a vontade da maioria não pode tudo e que um governante não pode alegar o apoio da maioria para fazer o que bem entender decorre dessa junção importante para a teoria constitucional democrática. O absolutismo da maioria é tão perverso quanto o absolutismo de um grupo, e a confusão entre opinião pública e democracia é sempre muito perigosa. Logo, a democracia constitucional liberal, construída por força do movimento operário e dos partidos de esquerda no século XIX, entende que a vontade da maioria não pode ignorar os direitos da minoria e os direitos de um só. Os limites à vontade da maioria são impostos pelo núcleo duro, intocável dos direitos fundamentais, protegidos pela Constituição, e que na época do liberalismo eram reduzidos apenas aos direitos individuais.
Desde então, o constitucionalismo evoluiu, transformou-se, regrediu nos últimos tempos e hoje se encontra em grave crise, quando o discurso econômico, de forma ideológica e autoritária, submete o Direito a seus pseudo-imperativos matemáticos. Entretanto podemos dizer que em todas as constituições modernas (sejam liberais, sociais ou socialistas) vamos encontrar sempre os dois tipos de conteúdos comuns em suas normas: organização e funcionamento do Estado com a sua conseqüente limitação do poder e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A evolução do constitucionalismo moderno coincide com a evolução do Estado moderno, o que foi estudado no capítulo 1 e 2 do tomo I do livro Direito Constitucional e revisto com outro enfoque no capítulo 2 do tomo II. Portanto não cabe aqui retomarmos este tema e remetemos o leitor a leitura daqueles capítulos.2
Um elemento essencial caracterizador da limitação do poder do Estado constitucional moderno é a sua divisão de poderes (ou funções).

A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES
A DIVISÃO DAS FUNÇÕES AUTÔNOMAS DO
ESTADO CONTEMPORÂNEO

Um dos princípios fundamentais do constitucionalismo moderno é o da separação de poderes. A idéia da separação de poderes para evitar a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamenta-se nas teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se um mecanismo que evitasse essa concentração de poderes, na qual cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Esse mecanismo foi aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, em que esses três poderes que reunissem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Esses mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida (o que é extremamente raro), permitirá que os três poderes sejam autônomos não existindo a supremacia de um em relação ao outro.
Importante lembrar que os poderes (que reúnem órgãos) são autônomos e não soberanos ou independentes. Outra idéia equivocada a respeito da separação de poderes é a de que os poderes (reunião de órgãos com funções preponderantes comuns) não podem, jamais, intervir no funcionamento do outro. Ora, essa possibilidade de intervenção, limitada, na forma de controle, é a essência da idéia de freios e contrapesos. No sistema parlamentar contemporâneo, também estudado no Tomo II, há a separação de poderes, havendo entretanto, mecanismo de intervenção radical no funcionamento do Legislativo por parte do Executivo (dissolução antecipada da parlamento) e do Legislativo no Executivo (a queda do governo por perda do apoio da maioria no parlamento).
No sistema presidencial, em que os mandatos são fixos, não havendo a possibilidade da intervenção radical do parlamentarismo, a intervenção ocorre na forma de controle e de participação complementar, por exemplo, quando o Executivo e Legislativo participam na escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal.
Outro aspecto importante é o fato de que os poderes têm funções preponderantes, mas não exclusivas. Dessa forma, quem legisla é o Legislativo, havendo, entretanto, funções normativas, por meio de competências administrativas normativas no Judiciário e no Executivo. Da mesma forma a função jurisdicional pertence ao Poder Judiciário, havendo, entretanto, funções jurisdicionais em órgãos da administração do Executivo e do Legislativo. O Contencioso administrativo no Brasil não faz coisa julgada material, pois a Constituição impõe que toda lesão ou ameaça a direito seja apreciada pelo Judiciário (Art. 5, inciso XXXV, da CF). Entretanto, em sistemas administrativos como o francês, há no contencioso administrativo diante de tribunais administrativos, a coisa julgada material, o que significa dizer que da decisão administrativa não há possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário. Finalmente, é obvio que há funções administrativas nos órgãos dos três poderes.
Com a evolução do Estado moderno, percebemos que a idéia de tripartição de poderes se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder, sendo necessário superar a idéia de três poderes para se chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções do que as três originais. Essa idéia vem se afirmando em uma prática diária de órgãos de fiscalização essenciais à democracia, como os Tribunais de Contas e o Ministério Público. Ora, por mais esforço que os teóricos tenham feito, o encaixe desses órgãos autônomos em um dos três poderes é absolutamente artificial e, mais, inadequado.
O Ministério Público, recebeu na Constituição de 1988, autonomia especial que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito à lei e a Constituição e, logo, os direitos fundamentais da pessoa, o patrimônio público e histórico, o meio ambiente, o respeito aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada suas funções constitucionais, o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é fiscalizar e proteger a democracia e os direitos fundamentais. Embora o constituinte de 1987-1988 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público de um quarto poder, a análise sistêmica do texto assim o caracteriza, ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar essa função de fiscalização típica do Ministério Público a qualquer outra função/poder significa reduzir os mecanismos de controle democrático o que é inconstitucional.
A efetiva autonomia especial do Ministério Público que o transforma em um Poder de fiscalização precisa ser estendida aos Tribunais de Contas e à Defensoria Pública, caracterizando desta forma um Poder de Fiscalização necessário para enfrentar as complexidades do Estado contemporâneo.
O que o constituinte brasileiro inovou, sem, entretanto, explicitar, o constituinte venezuelano o fez de forma inequívoca na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999. A Constituição Venezuelana estabelece cinco poderes: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, o Poder Cidadão (o Ministério Público, Tribunais de Conta e Defensoria Pública) e o Poder Eleitoral.
Podemos dizer que o Estado contemporâneo reúne as seguintes funções:

• a função legislativa;
• a função jurisdicional;
• a função constitucional (do poder constituinte derivado de reforma; dos poderes constituintes decorrentes dos estados e municípios e dos poderes constituintes de reforma criados por estes no âmbito estadual e municipal);
• a função administrativa;
• a função de governo;1
• a função simbólica de representação (típica dos sistemas parlamentares e pertencentes ao chefe de Estado);
• e a função de fiscalização.

Além da separação (melhor divisão) de poderes (melhor funções) horizontal até aqui tratada, temos ainda uma divisão vertical de poderes (ou competências), já estudada de forma detalhada no nosso Direito Constitucional Tomo II, quando estudamos as formas de organização territorial no Estado contemporâneo (o Estado Unitário descentralizado, o Estado Regional, o Estado Autonômico e principalmente nas várias formas de federalismo). A separação vertical de poder no Estado Federal permite superar o monismo jurídico, tornando possível a convivência de orde¬namentos jurídicos de até três níveis em um mesmo sistema constitu¬cional. Trata-se de uma forma plural de produção legislativa.
A seguir, estudaremos as novas funções do Estado, ressaltando a necessidade de reconhecimento e efetivação de um poder de fiscalização e ainda na necessidade de dividir funções preponderantes de governo (poder político) das funções preponderantes de gestão técnico-administrativa (função técnico-política) da administração pública que não pode se confundir com funções de poder político típicas do governo.

AS FUNÇÕES DO ESTADO CONTEMPORÂNEO

Superando a clássica divisão de poderes (funções) do Estado, entre Legislativo, Judiciário e Executivo, podemos dizer que o Estado, hoje, necessita de um sistema mais sofisticado de exercício de funções que permita a garantia dos processos democráticos. A Constituição brasileira de 1988 reconheceu a necessidade de nova função de fiscalização, e embora o constituinte não tenha tido a iniciativa de mencionar um quarto poder, efetivamente, criou essa quarta função autônoma essencial para a democracia e a garantia da lei e da Constituição, que é a função de fiscalização. O Ministério Público, encarregado dessa função, ao lado dos Tribunais de Contas e da Defensoria Pública, para exercê-la de maneira adequada, necessita de efetiva autonomia em relação às outras funções (poderes), não pertencendo nem ao Executivo, nem ao Legislativo, tampouco ao Judiciário. O mesmo ocorre com os Tribunais de Contas que, embora necessitem nova forma de escolha de seus membros para que assumam esse novo status, não podem pertencer a nenhum dos poderes tradicionais para exercer com eficiência sua função fiscalizadora.
Como já foi dito, podemos dizer que hoje é necessário separar as seguintes funções autônomas do Estado democrático: a função legislativa ordinária (de elaborar as leis infraconstitucionais); a função legislativa constitucional (de emendar e revisar a Constituição); a função jurisdicional; a função de governo; a função administrativa; a função de fiscalização (acima mencionada); e uma função simbólica (típica do chefe de Estado, função que, pelo seu simbolismo, não deve se confundir com a função de governo, esta de poder político).
Trabalhamos em outros momentos a acumulação de funções, fato típico do presidencialismo, em que o presidente acumula a função simbólica (chefe de Estado) de representação dos valores nacionais; a função de governo (de decisão política, definição de políticas publicas); e a função de chefe da administração pública civil e militar (função técnica-política). O acúmulo dessas funções na figura de uma única pessoa é responsável por grandes distorções do sistema político representativo, fazendo que o jogo político se torne equivocadamente personalista.
Para o adequado funcionamento da administração pública, as funções de governo (poder político) e as funções administrativas (de natureza técnica-política) devem ser separadas. Percebemos um movimento em diversas democracias contemporâneas no sentido de separar funções de governo de funções administrativas, decorrente da necessidade de eliminar os males de um sistema administrativo baseado em cargos de confiança, em que, para se conseguir apoios em votações no parlamento, o governo distribui cargos de chefia na administração pública, comprometendo a eficiência da administração e distorcendo o jogo político, que deveria ser em torno de projetos, idéias, programas, e não fundado em vaidades e interesses pessoais por cargos, privatizando o público e destruindo o Estado.
A questão que passamos a analisar, portanto, é como separar a função de governo da função administrativa e quais critérios podemos adotar para efetivar essa divisão que coloque o governo democraticamente eleito na sua função constitucional, que não é a de distribuir cargos em troca de apoios provisórios e inspirados em interesses personalistas, mas, sim, de fazer com que a administração pública funcione de forma eficiente, apta a cumprir as determinações do governo e do parlamento de acordo com os princípios de eficiência, legalidade (leia-se constitucionalidade), impessoalidade, moralidade e publicidade.

GOVERNO X ADMINISTRAÇÃO, DEMOCRACIA, POLÍTICA
E EFICIÊNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO

O excesso de cargos de confiança e o uso inadequado aos interesses públicos da possibilidade de escolha das chefias da administração pelos governantes, comprometendo uma eficiente gestão dos entes da administração, levaram à busca de alternativas que resguardassem a eficiência administrativa, oferecendo uma administração que deve servir as determinações políticas com competência técnica.
Essa discussão ocorre sob outra perspectiva contemporânea não menos importante: a busca da descentralização e fragmentação coordenada de poder, permitindo maior celeridade nas decisões, responsabilidade do administrador, uma vez que quem decide está próximo do administrado e, em decorrência da proximidade entre administrado e administrador, a possibilidade concreta de controle da sociedade sobre o Estado.
Isso posto, perguntamos: O chefe de governo deve escolher os reitores das universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais e de órgãos de pesquisa, dentre outros. A resposta óbvia diante do que já foi discutido anteriormente é não. O governo deve estabelecer as grandes políticas de investimento nos mais diversos setores de interesse público, como investimentos em saúde, educação, meio ambiente, definição de políticas econômicas, incentivo à produção, escolha de grandes diretrizes técnicas, dentre outras questões, mas não há motivo para que esse mesmo governo encarregado de definições políticas e de modelos técnicos e científicos que se adaptem às suas políticas (e nunca o contrário), escolha o profissional que vai gerir o dia-a-dia de uma escola de primeiro e de segundo grau, ou o gestor de um hospital, ou de uma universidade, ou de um instituto de pesquisa, etc. Temos, então, um indicativo para estabelecer a diferença entre uma função administrativa e uma função de governo. Entretanto, a questão não é tão simples. Se gerir uma escola é preponderantemente uma função técnica, não é exclusivamente técnica. Ao mesmo tempo, se a definição de grandes linhas de políticas públicas é uma função preponderantemente política, não pode ser exclusivamente política, pois necessita de suportes técnico-científicos que, entretanto, devem se subordinar sempre à decisão política.
Por esse motivo, embora seja necessária a divisão em função administrava distinta da função de governo, a função administrativa não deve ser, em geral (sempre há exceções), uma função exclusivamente técnica, acrescendo, sempre que possível, aspectos democráticos que incentivem o controle social na escolha dos cargos de chefia. Daí falarmos em eleição de reitores de universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais, desde que cumpridos critérios técnicos.
Assim, podemos dizer que a gestão de serviços públicos deve ser deixada para entes administrativos autônomos (criados por lei com competências próprias em que o poder central não possa intervir e, sempre que possível, com a participação do administrado na escolha do gestor), enquanto as escolhas políticas e a construção de políticas públicas de investimentos, políticas econômicas, de saúde e educação, dentre outras, devem ser do governo. Não deve o governo escolher o diretor de uma escola e de um hospital, assim como não pode um ente administrativo autônomo, sob o pretexto de escolhas técnicas, assumir escolhas políticas encobertas pelo discurso pseudoneutro da técnica. De acordo com esse raciocínio, o Banco Central do Brasil não pode nunca ter autonomia para escolher políticas monetárias, por ser essa autonomia inconstitucional ao retirar do espaço político-democrático do governo democraticamente eleito a possibilidade de escolha das várias opções técnicas econômicas relativas às políticas econômicas para o setor.



CONCLUSÃO:
O FUTURO DO DIREITO
CONSTITUCIONAL - CRISE
E RECONSTRUÇÃO

COMO VIMOS, O Direito Constitucional contemporâneo passou a incorporar a idéia de democracia como essencial a qualquer ordem constitucional. Entretanto, a democracia vem sofrendo ataques, adaptações, tendo seu sentido transformado e seqüestrado pelo poder econômico e mais recentemente pelo projeto neoconservador. O grande desafio é resgatar esse conceito, que deve estar conectado à idéia de justiça social e econômica, sem o que a democracia efetiva não é possível. Outro aspecto a ressaltar é o de que a democracia não é um lugar onde se chega, a democracia é sempre um caminho. No nosso livro Poder Municipal,1 procuramos construir uma proposta de um novo papel a ser desenvolvido pela Constituição não como ordem reacionária, que reage às mudanças fora dos limites constitucionais, mas como mecanismo transformador que atua no sentido de colocar toda a estrutura do Estado a serviço das transformações democraticamente construídas, entendendo-se não só à democracia como processo, mas à Constituição como asseguradora desse processos de transformação.
O pano de fundo ideológico que começou a ser construído a partir da década de 1970 foi o da criação da ideologia do fim da história, pelo menos na área econômica, onde se coloca o modelo econômico neoconservador (chamado para efeito de marketing de neoliberal), como o grande modelo vitorioso, o único modelo possível, discurso que veio ser fortalecido com o fim da União Soviética e, simbolicamente, com a queda do muro de Berlim.
A idéia que se constrói a partir da ascensão conservadora e o fim do socialismo real na Europa oriental é a da vitória do liberalismo e o fim da história (o que é uma gigantesca bobagem). Essa estratégia discursiva é seguida de outra construção ideológica da direita conservadora: a idéia de que a economia é uma ciência que mostra respostas técnicas exatas aos problemas diários de produção, consumo, emprego, desenvolvimento, inflação, tecnologia e bem-estar, e, sendo esse discurso técnico-científico quase matemático, não podem os políticos e os juristas se insurgir contra ele.
No momento em que aceitamos a mentira de que a economia não pode ser subordinada ao Direito e seus imperativos de justiça social e econômica, e, logo, à política, que produz o Direito na instância parlamentar, desautorizamos a democracia, que então nada pode diante dos (pseudo) imperativos econômicos; desautorizamos o Direito (que não deve regulamentar a economia) e a política (feita por não técnicos). O pressuposto ideológico falso que sustenta a separação da economia do Direito e da política parte da aceitação de que há apenas um modelo econômico possível e que nesse modelo há decisões tecnicamente acertadas que não podem ser contrariadas pela política (como espaço democrático de criação inicial do Direito) e, logo, pelo Direito. É óbvio que não podemos negar que existem decisões no âmbito econômico que são fundadas em teorias com base científica e tecnicamente recomendadas. O que é falso e que sustenta a ideologia conservadora contemporânea é a afirmativa de que existe apenas um modelo econômico, um único caminho a ser seguido na economia. Existem diversos modelos econômicos, e a escolha desses modelos só pode ser política, pois deve ser democrática. É nesse sentido que a política democrática e o direito devem submeter a economia ao sentido constitucional de justiça econômica e social tão cara ao Estado Democrático e Social. Não é o Direito que deve se adequar a economia por não existir outro modelo possível. É a economia que deve se adequar ao Direito por existirem outros modelos possíveis. São os economistas que devem adequar a ciência econômica, construir teorias econômicas que tornem viáveis a vontade constitucional. A equação foi invertida e transformada em dogma. Essa é uma questão ideológica central da contemporaneidade. Essa é a grande mentira de nossa época.
Em decorrência dessa mentida, assistimos ao comprometimento da democracia, quando governos eleitos se abstêm de modificar o modelo econômico; a partir dessa mentira assistimos ao comprometimento ou o suicídio da centro-esquerda, que ao chegar ao poder mantém os mesmos modelos econômicos conservadores excludentes. Enfim, como já ressaltamos, assistimos ao comprometimento do Estado de Direito, quando os juízes e os tribunais não aplicam a lei e a Constituição, pois estas podem comprometer a estabilidade econômica, o investimento estrangeiro e o risco país.
A crise econômica que se iniciou em 2008 mostra a fragilidade do sistema global e a insustentabilidade do discurso neoliberal e suas políticas de destruição do Estado por meio de privatizações que só fizeram criar exclusão radical e aumento das diferenças sociais com mais conflitos armados e maior criminalidade.
Esta crise, que se somou a crise ambiental, trouxe de volta as políticas de bem-estar social em vários países, incluindo os Estados Unidos. A proposta orçamentária do governo Obama revela a volta das políticas públicas de saúde, previdência e educação com um enorme investimento público nestes setores, além da necessidade de subordinação da economia aos imperativos do direito e da justiça social. Neste sentido se renovam os princípios orçamentários do Estado de bem-estar social, de priorização dos investimentos públicos e do orçamento como medida de política econômica e sua estabilidade, com “déficits” e “superávits” que representam um maior investimento estatal em momento de crise e um recuo do estado em momento de crescimento, o oposto do que se fez diante das tacanhas políticas liberais.
Este momento de retorno da centralidade da Política e do Direito diante da economia, é o momento de repensarmos o Estado democrático, criando estruturas que sejam capazes de enfrentar as complexidades contemporâneas. O Estado contemporâneo deve apostar na descentralização; na democracia radical participativa e deliberativa; e na criação de estruturas fragmentadas de poder onde a fiscalização do respeito à Constituição e aos direitos fundamentais seja efetiva. Um “poder de fiscalização” que fortaleça o Ministério Público, os Tribunais de Contas e a Defensoria Pública pode ser um importante sinal no sentido de que a fiscalização, contra os abusos dos que ocupam o poder do estado, é um mecanismo fundamental para a democracia.
Finalmente queremos relembrar que é essencial que criemos mecanismos de participação direta do povo, dos cidadãos, no poder do estado, superando gradualmente a ultrapassada e pouco democrática dicotomia liberal entre estado e sociedade civil.