quinta-feira, 28 de abril de 2011

Direitos Humanos 5 (os direitos individuais - do estado liberal à crise do estado social)

Os Direitos Individuais

1 A TEORIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

Para estudarmos os direitos individuais e sua teoria é necessário compreendermos, em primeiro lugar, que esses direitos, surgidos com o constitucionalismo liberal que se afirmou nos séculos XVII e XVIII com as revoluções burguesas (inglesa: 1688; norte americana: 1776; e francesa: 1789), modificaram-se com o tempo, até chegar a sua concepção de um dos grupos que integram o todo indivisível dos direitos fundamentais (direitos individuais, sociais, políticos e econômicos). Dessa forma, é necessário que o leitor perceba que desenvolveremos, primeiramente, a teoria liberal desses direitos para, posteriormente, analisarmos sua evolução; daí poderemos compreendê-los não como direitos contra o Estado ou como direitos pré-estatais, mas como um grupo de direitos que, para ter efetividade, têm como pressupostos a existência não apenas de garantias constitucionais e processuais, mas o que chamamos de garantias socioeconômicas de exercício das liberdades individuais e políticas. Em outras palavras, para ser livre o indivíduo tem de estar liberto das carências materiais. A liberdade individual e a política só podem existir numa sociedade onde haja democracia econômica e social. Entretanto, para chegarmos a essas conclusões, que de forma alguma são pacíficas, e que começam a ceder espaço a novas concepções construídas nesse conturbado e indefinido final de século, muito caminhou o Direito Constitucional.
Comecemos, pois, pela análise dos direitos individuais por uma perspectiva liberal. Para isso citaremos autores liberais, passando, posteriormente, por uma leitura social (prefiro chamá-la social-liberal), até chegarmos à teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais.
A liberdade individual é o ponto de convergência desse grupo de direitos. Luís Recaséns-Siches nos ensina que

“os chamados tradicionalmente direitos individuais são em essência (ainda que não de modo exclusivo) direitos de liberdade, de estar livre de agressões, restrições e ingerências indevidas, por parte de outras pessoas, mas de modo especial por parte das autoridades públicas. Os direitos individuais vão significar um não-fazer dos outros indivíduos, mas principalmente por parte do Estado”.1

Significa que, diante dos direitos individuais, deve o Estado ter uma atitude de respeito; o Estado não pode violar, desrespeitar esses direitos.
Duguit, ao escrever sobre o Estado de Direito, mostra-nos que, para a compreensão deste, é necessário ter-se como pressuposto fundamental que o Estado é subordinado a uma regra de direito superior e anterior a ele mesmo, a qual ele não pode violar. Todas as manifestações do Estado estão limitadas por um direito superior, que o proíbe de agir contra determinados direitos individuais.2 Duguit afasta da discussão a importância da fundamentação dada a este direito superior. A limitação do Estado pelo direito deve ser aceita, qualquer que seja o fundamento, seja “a doutrina individualista que crê na existência de Direitos Naturais, individuais, inalienáveis e imprescindíveis, anteriores ao Estado e vindo limitar sua ação”;3 seja a doutrina solidarista que afirma existir uma regra de direito que é imposta a todos e que pertence a um princípio superior inato na consciência humana; ou seja um fundamento puramente positivista. O importante é compreender que existe uma regra de direito superior ao Poder Público, que limita e impõe deveres ao Estado.4
Manoel Gonçalves Ferreira Filho escreve que as Declarações de Direitos dos séculos XVIII e XIX teriam como objetivo principal “armar os indivíduos de meios de resistência contra o Estado. Seja por meio delas estabelecendo zona interdita à sua ingerência – liberdades-limites – seja por meio delas armando o indivíduo contra o poder no próprio domínio deste – liberdades-oposição”.5
Parece-nos, porém, que não devemos considerar o Estado o inimigo da liberdade, como era considerado pelas Declarações dos séculos XVIII e XIX.6 Podemos, sim, estabelecer um paralelo entre direitos individuais e democracia, e afirmar que esses direitos e garantias são, além de defesas das liberdades individuais, defesas do Estado democrático.
Loewenstein afirma que “a proteção dos direitos e liberdades fundamentais são o núcleo essencial do sistema político da democracia constitucional”.7
Alcorta afirma serem os direitos individuais “todos aqueles que constituem a personalidade do homem, e cujo exercício lhe corresponde exclusivamente, sem outro limite que o do direito correspondente”.8
Vedel entende que “em sua essência, a doutrina dos direitos individuais é a afirmação de que os indivíduos têm determinados direitos que lhes são inerentes e aos quais o Estado não pode causar lesão. Significa que o Estado não é a única fonte do direito, pois existem direitos individuais que lhe são anteriores e superiores”.9
Segundo Duverger, o liberalismo político que teve suas origens mais antigas na Reforma Protestante, que proclamou o livre exame de consciência, e no método de Descartes, que nega qualquer princípio a priori, está “inteiramente resumido no art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: Os homens permanecem livres e iguais em direitos. As palavras liberdade e igualdade expressam o essencial da ideologia liberal”.10 Dessa forma, a igualdade significa que ninguém terá privilégios hereditários. É a afirmação da igualdade de todos perante a lei: “A liberdade significa que cada homem pode pensar, se expressar e trabalhar como ele queira, e a liberdade dos outros é o único limite para a liberdade de cada um”.11
Duverger estabelece uma distinção entre liberdades civis e liberdades públicas: para ele liberdades civis são aquelas que dizem respeito à atividade privada. Significam garantia, proteção contra prisões arbitrárias, e garantem a inviolabilidade do domicílio, a liberdade de correspondência, etc. As liberdades públicas se referem àquelas relações dos cidadãos entre si, que são a liberdade de imprensa e outros meios de expressão do pensamento, como livros, rádio, televisão, a liberdade de reunião e de associação. As liberdades públicas, portanto, são de grande importância para a garantia da expressão do pensamento.12
Tanto as liberdades privadas como as liberdades públicas estão no plano dos direitos individuais fundamentais.
Karl Loewenstein estabelece um outro critério para a classificação das liberdades fundamentais. Para ele há uma distinção entre “as liberdades enraizadas diretamente na pessoa – as liberdades civis em sentido próprio – das liberdades econômicas e políticas”. Pode-se incluir entre as primeiras, a proteção contra a arbitrária privação da liberdade – o habeas corpus – na tradição inglesa e também em nosso Direito; a inviolabilidade de domicílio; a liberdade e o segredo de correspondência, dentre outros. Na segunda categoria de liberdades fundamentais estão as liberdades econômicas fundamentais, a liberdade de escolha de profissão, a liberdade da livre disposição sobre a propriedade e a liberdade de contrato.13
Convém ressaltar que, a partir das Constituições sociais, a propriedade privada deixa de ser um direito absoluto. Embora continue sendo um direito individual fundamental, encontra limites estabelecidos pelo interesse da coletividade.
Recaséns-Siches procura estabelecer o objeto dos direitos individuais:

“Têm como objetivo predominante uma conduta própria do indivíduo, a qual este pode decidir livremente, por exemplo: a liberdade pessoal; a liberdade do pensamento; de consciência e de religião; a liberdade de opinião e de expressão; a inviolabilidade de domicílio; a liberdade de circulação, etc.; ou tem como objeto garantias ou defesas para a pessoa individual, por exemplo: de não ser submetido a escravidão, a torturas, a desigualdades perante a lei; de não ser arbitrariamente detido, preso e desterrado; de ser julgado conforme a lei, com todas as garantias processuais, etc.”14

Afonso Arinos afirma que os direitos individuais são ao mesmo tempo públicos e individuais. Públicos “porque fazem com que o indivíduo se relacione diretamente com o Poder Público”, e individuais “porque sua finalidade reside em dinamizar normas jurídicas, no interesse individual”. Para melhor explicar essa afirmação, diz que
“as normas jurídicas e os direitos públicos individuais se distinguem em seu funcionamento, servindo essa distinção para os caracterizar devidamente.
“Nesse sentido, as normas jurídicas, em regra, funcionam para determinar:

a) um direito do indivíduo face a outro indivíduo;
b) em referência a fatos ou situações concretas, estranhos a um e outro, que ocupam os pólos da relação jurídica (a exemplo de bens e direitos que se disputam).

Já os direitos públicos individuais funcionam:

a) não em referência a outro indivíduo, mas sim, ao próprio Estado;
b) em relação a princípios abstratos – que não são, pois, alheios ao indivíduo, eis que integram a sua personalidade – sendo sua observância obrigatória para o Estado”.15

Carl Schmitt, teórico do Estado Social, e não um liberal, no seu livro Teoría de la Constitución, estabelece uma classificação dos direitos individuais, de acordo com uma nova perspectiva teórica representada pelo paradigma do Estado Social, na sua compreensão assistencialista e clientelista (que costumo classificar de Estado Social-Liberal), representando o momento de surgimento do Estado Social que, posteriormente, encontrará outras formas de compreensão. Para ele os direitos individuais podem ser divididos em quatro grupos: no primeiro grupo estão os direitos de liberdade dos indivíduos isolados, que compreendem a liberdade de consciência, a liberdade pessoal, a propriedade privada, inviolabilidade de domicílio e o segredo de correspondência. No segundo grupo, os direitos de liberdade do indivíduo em relação aos outros, ou seja, a livre manifestação das opiniões, as liberdades de discurso, a liberdade de imprensa, a liberdade de culto, a liberdade de reunião, a liberdade de associação. Estes dois primeiros grupos são considerados por Carl Schmitt como garantias liberal-individualistas da esfera de liberdades individuais, da livre competência e da livre discussão. O terceiro grupo é o dos direitos do indivíduo no Estado, como cidadão. Estes são os direitos político-democráticos do cidadão e compreendem os direitos de igualdade perante a lei, de petição, igualdade de voto e igual acesso aos cargos públicos.16 Finalmente, o quarto grupo é dos direitos do indivíduo a prestações do Estado. São estes o direito ao trabalho, à assistência e socorro, à educação, formação e instrução.17
Este quarto grupo é conhecido do direitos sociais, e dessa forma classificados neste livro.
Mesmo quando define esses direitos, Carl Schmitt, afirma serem eles “direitos e pretensões socialistas (ou mais suavemente: sociais)”.18 Podemos dizer então que os dois primeiros grupos relacionados seriam os direitos fundamentais que estão a proteger cada indivíduo isoladamente contra a ingerência indevida do Estado. São principalmente aquelas liberdades que são exercidas exclusivamente pelo indivíduo, sem participação do Estado, e cujo único limite é a liberdade do outro. Sua característica básica é a omissão como regra de comportamento estatal.
No terceiro grupo relacionado acima, encontramos a igualdade jurídica como a segunda característica essencial desses direitos individuais; o direito de petição como forma de se dar eficácia aos direitos e garantias individuais; e a igualdade de voto, que classificamos como direitos políticos fundamentais.
Quanto ao quarto grupo, podemos dizer que a característica desses direitos fundamentais na sua classificação social-liberal (uma vez que estes direitos sociais não existem no Estado Liberal) é essencialmente oposta no que diz respeito ao comportamento estatal. Enquanto perante os direitos individuais a regra é a omissão, perante os direitos sociais a regra é a ação estatal para suprir as necessidades coletivas e as exigências sociais.
Observa-se que a classificação dos direitos individuais no Estado Social-Liberal mantém o tratamento estanque dos grupos de direitos fundamentais, como se pudéssemos admitir que os direitos individuais sejam efetivados de maneira estanque, sem a existência dos seus pressupostos, ou seja, sem a existência de condições socioeconômicas de igualdade de oportunidades, oferecidas numa perspectiva includente do Estado Social. Esse tratamento estanque é superado pela teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais.
Para melhor compreendermos a evolução dos direitos individuais no contexto da evolução constitucional, vamos retomar alguns aspectos da evolução dos tipos de Estado, de certa forma já mencionado no capítulo, mas que devem ser aprofundados neste momento do estudo para permitir a melhor compreensão dos paradigmas do Estado.


2 OS TIPOS DE ESTADOS CONSTITUCIONAIS

2.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL

O Estado Constitucional moderno compreende um processo evolutivo que pode ser dividido em seis fases distintas e três tipos de Estado: o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Socialista, representando os três grandes tipos de Estado que, entretanto, apresentam, cada um, uma enorme variante, segundo o lugar e a época.
Importante observar que, ao dividirmos as fases evolutivas dos Estados constitucionais, procuramos demonstrar essa evolução de maneira teórica e não histórica. Dessa forma, embora cronologicamente as fases evolutivas tenham se sucedido na História, cada Estado vivenciou a experiência de maneira diversa, em épocas por vezes diferentes, com intensidade diferente, sendo que nem todos experimentaram todas as fases, e, principalmente, houve uma grande diferença na realização dos modelos constitucionais correspondentes a cada tipo de Estado, segundo o grau de desenvolvimento econômico de cada país, além da sua realidade cultural.
Isso posto, podemos iniciar nossa evolução do Estado Constitucional moderno, com a Revolução Norte-Americana em 1776, a Constituição da Federação Norte-Americana de 1787 e o processo da Revolução Francesa a partir de 1789. Nesse momento, afirma-se o Estado Liberal, primeiro tipo de Estado Constitucional. Em linhas gerais, o Estado Liberal caracteriza-se pela omissão perante os problemas sociais e econômicos, não consagrando direitos sociais e econômicos no seu texto além da regra básica de não-intervenção no domínio econômico. As Constituições liberais declaram os direitos individuais, entendidos como direitos que regulam condutas individuais e protegem a esfera de interesses individuais, contra o Estado, sendo o limite desses direitos o direito do outro, além de assegurarem ainda os direitos políticos. O conteúdo destes direitos é variável de Estado para Estado, assim como o tratamento que estes direitos recebem é diverso no tempo e no espaço.
A primeira fase do Estado Liberal caracteriza-se pela vitória da proposta econômica liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos que se fundamentam na propriedade privada, principalmente na propriedade privada dos meios de produção. O alicerce teórico da liberdade é a propriedade, e os cidadãos são aqueles que participam da ordem econômica de forma produtiva. Os direitos políticos em sentido restrito, entendidos como direitos de participar no poder do Estado votando e sendo votado, são apenas dos proprietários que tenham acima de renda anual, muitas vezes constitucionalmente prevista. Assim, o cidadão será apenas o proprietário, será cidadão.
Numa segunda fase, ocorre uma evolução do conceito de cidadania, resgatando-se a idéia da igualdade jurídica, e não mais a propriedade privada como alicerce dos direitos fundamentais. Fruto de lutas sociais e parlamentares, que têm em cada país pesos diferentes, conquista-se o direito ao voto secreto, periódico e universal. Desaparece assim a diferenciação em razão do poder econômico, para se ter acesso ao voto, permanecendo, entretanto, em vários países, a diferenciação em razão de sexo, que desapareceu em alguns casos apenas no século XX, e outras limitações permanecem, como as que ainda hoje existem, como a idade e a escolaridade, por razões claras.
As regras do liberalismo, embora bem simples, não levam ao que fora prometido pelos seus teóricos. O descumprimento das regras pelos competidores levava a economia do século XIX a um processo de crescimento jamais visto até então e a uma acumulação e concentração de riquezas também incomuns. A concentração de riqueza levou à eliminação da livre concorrência e da livre iniciativa (idéias basilares do liberalismo), ao mesmo tempo que acentuava a limites alarmantes a miséria e outras formas emergentes de exclusão social. A resposta inicial do Estado Liberal foi a de combater a crescente marginalidade, criminalidade e as revoltas sociais de trabalhadores com a força policial e com reformas urbanas, que permitissem à polícia controlar mais facilmente as revoltas sociais. Entretanto, a organização internacional de trabalhadores e a existência, na segunda metade do século XIX, de uma proposta científica como alternativa ao Estado liberal fizeram com que a elite, que se afirmou com o modelo econômico construído neste século, percebesse a necessidade de gradativamente incorporar reivindicações dos trabalhadores e propostas dos socialistas, numa tentativa de atenuar as distorções sociais e econômicas e acalmar a tensão social.
Dessa forma, o Estado Liberal passou a admitir uma sensível mudança de postura perante as questões socioeconômicas, garantindo determinados direitos sociais, como a limitação da jornada de trabalho, a regulamentação do trabalho do menor e a previdência social. O Estado alemão, recém-unificado, é um dos pioneiros na legislação social, enquanto a Áustria elabora sua legislação previdenciária, e nos Estados Unidos, em 1890, temos a Lei Sherman, modelo de legislação anti-truste, visando combater a concentração econômica que provoca a eliminação da concorrência e da livre iniciativa.
Podemos caracterizar essa terceira fase como um momento de transição entre o Estado Liberal e o Estado Social, que nasceria com a Primeira Guerra Mundial. Embora no final do século XIX e início do século XX as Constituições liberais mantivessem ainda a característica de ser essencialmente um texto político, sem a previsão de intervenção no domínio econômico e nas questões sociais, a legislação infraconstitucional incorpora essas mudanças de postura por parte do Estado
Entretanto, a mudança tardia de comportamento do Estado não é capaz de solucionar a grave crise que resulta na Primeira Grande Guerra (1914-1918 ), divisor de águas entre o Estado abstencionista e o novo Estado Social assistencialista. Em 1917, no México, o mundo assiste ao advento da primeira Constituição Social que, mantendo o núcleo liberal de direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais acrescentando dois novos grupos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho, à saúde, à educação, à previdência, e os direitos econômicos, marcando a postura intervencionista do Estado, que passa a regular a economia e, em alguns casos, a exercer atividades econômicas.
Embora cronologicamente a Constituição Mexicana de 1917 tenha sido a primeira, a Constituição matriz do constitucionalismo social foi a de Weimar (Alemanha, 1919).
É importante notar que as mudanças sociais através de um processo de democracia representativa não são capazes de oferecer respostas imediatas para o caos social e econômico em boa parte da Europa, especialmente na Alemanha e na Itália. Ao mesmo tempo, a revolução bolchevique na Rússia e a imediata expansão do recém-criado Estado socialista ao vasto império czarista, formando a União Soviética, representava uma séria ameaça aos interesses do capital no restante da Europa. O Estado socialista que surgiu também em 1917 na Rússia, ao contrário do Estado Social-Liberal no modelo alemão e mexicano, representava uma ruptura com o modelo de economia e de sociedade capitalistas, e com os valores liberais.
Podemos dizer que o Estado Social-Liberal significou uma necessária mudança do Estado Liberal clássico, para de alguma forma preservar a idéia de uma economia capitalista livre, onde, à custa do não-intervencionismo estatal, se preservasse a concorrência e a livre iniciativa. Em outras palavras, o liberalismo muda e o capitalismo liberal passa a ter uma preocupação social para preservar uma importante parcela do núcleo do pensamento liberal.
Não há uma justificativa geral aplicável a todos os Estados que passaram por esse processo, mas, em geral, a mudança de comportamento do Estado perante as questões sociais e econômicas teve em menor ou maior grau, como motivação, a pressão dos trabalhadores e dos movimentos sociais e das internacionais socialistas; a pressão dos liberais pela necessidade de se preservar a concorrência comprometida pela concentração econômica; a grave crise social, e a ameaça socialista, vindo, de certa forma, o intervencionismo estatal evitar a continuidade do processo de concentração, mas, ao mesmo tempo, preservar o modelo de repartição econômica de riquezas e, portanto, privilégios econômicos, construídos durante o século XIX.
Dessa forma, com o Estado socialista batendo às portas de boa parte dos Estados europeus, e com a incapacidade de o modelo social-liberal responder de maneira urgente à crise social e econômica, o mundo assiste ao nascimento e ao crescimento dos movimentos nacionalistas na Europa, Ásia e América.
Não se pode dizer que o fascismo, assim como o nazismo, surgiram como forma de se evitar o crescimento do socialismo na Europa, mas sem dúvida a sua ascensão definitiva teve um fundamental empurrão do grande capital nacional na Itália, na Alemanha e em outros países, evitando que a revolução socialista se expandisse e, assim, comprometesse interesses desse capital. No livro de Leandro Konder, Introdução ao Fascismo, o autor com clareza demonstra as razões pelas quais o grande capital alemão e italiano percebem nos movimentos ultranacionalistas uma força capaz de comprometer o movimento comunista em seu território e os financiam.
O fascismo europeu e o nazismo têm em comum um discurso social, a prática de uma economia dirigida voltada para a industria bélica, a violência, sendo um movimento antidemocrático, anti-socialista, antiliberal, anticomunista, antioperariado, ultranacionalista e, especialmente no caso alemão, anti-semita.
A capacidade do fascismo e do nazismo de reverter a penetração do movimento socialista reside na sua forte base cultural, na qual se funda o discurso social nacionalista. Resgatando elemento por sobre o qual se constrói o sentimento de pertinência a um Estado nacional, como o passado histórico comum, valores comuns, idioma comum e projeto político comum, o fascismo, nas suas variadas formas, busca construir a unidade nacional contra o estrangeiro que oprime, que é inferior, que impede o desenvolvimento livre da nação, possibilitando com isso oferecer uma alternativa muito mais próxima da realidade do povo, pois se uma alternativa nacional capaz de desmobilizar a proposta internacionalista e nova de luta de classes, presente no socialismo. Contra o internacionalismo socialista construído a partir do objetivo comum de todos os trabalhadores para eliminar o capital opressor, nada melhor que o discurso social-nacionalista contra o opressor estrangeiro. Note-se que a proposta fascista teve um forte apelo na Europa, pois funda-se em valores culturais fortemente enraizados, podendo facilmente desmobilizar o internacionalismo, que procura ainda construir uma solidariedade e uma unidade com bases multinacionais.
Com força para barrar a expansão da revolução socialista, o fascismo (e o nazismo) é a alternativa para o grande capital nacional, que financiará a sua ascensão ao poder em vários Estados europeus, e de maneira mais profunda na Alemanha e na Itália.
O Estado Social fascista, produto dos interesses do grande capital nacional e da crise social econômica que se abateu sobre alguns países europeus, tornou-se responsável pelo maior conflito militar da história da humanidade, e após a Segunda Guerra Mundial, com a derrota militar da Alemanha, da Itália e do Japão, o mundo passa a ter duas novas potências, sendo construído a partir de então um mundo bipolar e a Guerra Fria até 1989.
Entre tantas derrotas, principalmente a da humanidade, os vencedores são aqueles que têm suas reivindicações atendidas. Basta para isso lembrarmos que entre as sete grandes economias do mundo encontram-se Alemanha, Itália e Japão. O povo e os exércitos desses países foram derrotados, mas o grande capital que financiou a alucinação fascista foi vitorioso mais uma vez.
O período pós-guerra trouxe o renascimento do Estado Social, assim como a expansão do Estado Socialista. Enquanto este representa uma ruptura com a economia liberal e o capitalismo, aquele representa um novo paradigma, sem, entretanto, existir uma ruptura com o capitalismo liberal. As Constituições socialistas consagram uma economia socialista, garantindo a propriedade coletiva e estatal e abolindo a propriedade privada dos meios de produção. Há uma clara ênfase aos direitos econômicos e sociais e uma proposital limitação dos direitos individuais, pois o exercício desses direitos no Estado Socialista, está condicionado à evolução do Estado e da sociedade socialista, que devem ser capazes de educar e preparar o cidadão a viver no futuro em uma sociedade completamente livre, onde não haja Estado, poder ou hierarquia: a sociedade comunista.
Por essa característica do Estado Socialista não podemos classificá-lo simplesmente como uma espécie de Estado Social. Sua evolução se destaca da linha evolutiva que traçamos neste trabalho, pois rompe com a economia capitalista.
Retornando à nossa linha evolutiva, que parte do Estado Liberal, temos no pós-guerra a retomada do que podemos chamar de uma quarta fase evolutiva e teórica do Estado Constitucional. Essa quarta fase, que tinha sido bruscamente interrompida com os anos violentos do fascismo e do nazismo, retorna agora com muito mais força; os Estados da Europa Ocidental experimentam a implementação eficaz do Estado de Bem-Estar Social, mas, embora os Estados de economia periférica tenham adotado Constituições sociais, isso não ocorre de maneira completa na América Latina, Ásia e África.
Esse Estado Social-Liberal é marcado por um assistencialismo e clientelismo típico do novo liberalismo social. O Estado deixa a postura abstencionista, em que não tinha nenhuma preocupação social e econômica, e passa a intervir no domínio econômico regulando e em alguns casos exercendo atividade econômica, passando a assistir a clientela permanente do Estado, ou seja, os excluídos do sistema social e econômico necessários à existência do sistema capitalista. O pleno emprego é nesse estágio do desenvolvimento do capitalismo uma condição inexistente. O número de desempregados aponta a força dos sindicatos e a possibilidade de pressão sobre os interesses do capital. Quanto mais emprego, mais fortes os sindicatos. As políticas de emprego, além de políticas de preços (controle da inflação), mantêm os sindicatos sob controle do capital e do Estado. Cria-se o desemprego para enfraquecer os sindicatos, assim como aumenta-se a inflação para reduzir salários, mantendo-se as reivindicações salariais em níveis não ameaçadores aos lucros crescentes.
As Constituições sociais elevam os direitos sociais e econômicos ao nível de norma fundamental, havendo uma ampliação do leque de direitos fundamentais, somando-se estes ao núcleo liberal de direitos individuais e políticos. Entretanto, a leitura oferecida a tais direitos é ainda numa perspectiva liberal. Os direitos individuais são vistos como direitos contra o Estado e a liberdade fundamental existe se o Estado não intervém no livre espaço de escolha individual. Os direitos individuais e políticos são direitos de implementação imediata, e os direitos sociais e econômicos aparecem como normas programáticas, de implementação gradual e quando necessário. Os grupos de direitos fundamentais são vistos de forma estanque, o que faz com que a democracia, por exemplo, seja vista apenas como simples exercício do direito do cidadão de votar e de ser votado.
A Europa pós-guerra encontra-se destruída e, para os interesses da economia capitalista liberal, ameaçada pela expansão da influência soviética. Os Estados Unidos da América, nova grande potência global, nos países sob sua influência mantém os seus interesses por métodos diferentes. Enquanto o Terceiro Mundo, de economias periféricas, recebe Constituições sociais, mas governos autoritários ou ditaduras militares, que sejam capazes de manter o ideal comunista distante, a Europa Ocidental, aliada dos EUA, recebe apoio para reerguer sua economia e construir de forma efetiva o modelo de Estado de Bem-estar Social.
Podemos afirmar que este modelo de Estado existiu ou ainda existe de forma efetiva, na Europa. Nas economias periféricas, o Estado Social funciona de forma imperfeita ou incompleta.
A implementação efetiva dos direitos sociais e econômicos em boa parte da Europa Ocidental traz consigo o germe da nova fase democrática do Estado Social e a superação da visão liberal dos grupos de direitos fundamentais. O oferecimento, neste primeiro momento, de direitos sociais, como saúde pública e educação pública, dará à população os mecanismos para se formar, informar e daí se organizar, exigindo agora a sua inclusão no sistema econômico e social, pressionando o Estado a efetivar políticas econômicas que venham gerar empregos e salários justos. Essa combinação de fatores transformará o Estado Social, que de uma perspectiva clientelista, de manutenção da exclusão social, transforma-se em um Estado Social includente, pressionado pela população cada vez mais organizada e informada.
Do ponto de vista teórico, isso representa a consagração da tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais nesta quinta fase evolutiva do Estado. A liberdade não existe a partir da simples omissão do Estado perante os direitos individuais, mas a partir da atuação do Estado oferecendo os meios para que os indivíduos sejam livres. Dessa forma, a liberdade de expressão não existe apenas porque o Estado não censura a palavra ou a imprensa, mas porque os indivíduos têm acesso à educação, que lhe oferece o meio para formar a sua consciência filosófica, política e religiosa de maneira livre, e expressá-la. O direito à vida deixa de ser um direito a manutenção do organismo biológico funcionando porque o Estado não o extingue, mas sim o direito à saúde, à educação, ao meio ambiente, ao trabalho, à justa remuneração, etc. Em outras palavras, para o exercício dos direitos individuais, para que o indivíduo seja livre, ele tem que ter acesso a direitos sociais, como saúde, educação, e a direitos econômicos, como trabalho e justa remuneração. A democracia não se resume no ato de votar, mas na possibilidade de participação constante nos destinos do Estado, da sociedade e da economia de um povo que é livre porque tem acesso aos direitos sociais e econômicos.
O cidadão não é mais só o que vota, mas também, que se informa, se educa, que come, que mora, veste, trabalha, tem dignidade.
Este Estado Social europeu, includente, necessita de crescimento econômico que lhe garanta também crescente arrecadação tributária, para que possa arcar com os serviços públicos de qualidade e políticas econômicas includentes, o que faz diminuir a demanda social básica, pois diminui a exclusão, podendo, então, cada vez mais sofisticar a assistência a população e ainda poupar para promover a recuperação econômica nos períodos de crises cíclicas e passageiras do capitalismo.

2.2 AS RAÍZES DA CRISE DO ESTADO SOCIAL

Enquanto há crescimento econômico e alta arrecadação tributária, o Estado Social pode sofisticar-se com serviços públicos cada vez melhores. A educação é inteiramente pública e gratuita, assim como a assistência médica de qualidade, em vários Estados europeus. Entretanto, a capacidade do Estado de resistir a crises tem limites de intensidade e duração, e poucos contavam com a crise profunda da década de 70.
Com a crise econômica há uma diminuição da arrecadação tributária. Para isso o Estado Social estava preparado, pois vinha trabalhando com a idéia de superávit e déficit orçamentário: poupar nos momentos de crescimento e investir para recuperar a economia nos momentos de crise. Mas a crise profunda diminui a capacidade do Estado de responder à crescente demanda social, estando mais frágil justamente quando é mais requisitado. Este é o momento de penetração da proposta neoliberal já presente como uma crítica ao Estado Social desde o pós-guerra. Os neoliberais apresentam uma solução para a crise que o Estado Social, naquele momento, não era capaz de superar. Para superá-la era necessário criar-se as condições para acumulação e expansão do capital, com a posterior criação de riquezas e empregos.
Para que o capital se expandisse era necessário que o Estado criasse as seguintes situações ideais:

1. Diminuição do Estado com processos de privatização, permitindo que o setor privado pudesse atuar naqueles setores onde o Estado era concorrente ou único ator.
2. Com a diminuição do Estado, inclusive nas suas prestações sociais fundamentais, é possível a diminuição ou eliminação dos tributos do capital, deixando que a classe assalariada arque com o que subsiste dos serviços públicos (os dados do período Reagan nos EUA ilustram essa afirmativa).
3. Enfraquecimento dos sindicatos para que não haja pressão eficiente sobre o valor do trabalho ameaçando os lucros crescentes.
4. Para enfraquecer os sindicatos são necessárias políticas econômicas de geração do desemprego, com a substituição gradual do trabalho humano pela automação (o capital tem investimento maciço em serviços e bens sofisticados para ampliação dos lucros, aumentando o consumo sem aumentar os consumidores, permitindo assim, também, a geração do desemprego, o que pode parecer incompatível).
5. Com o enfraquecimento dos sindicatos, há diminuição dos salários em determinada área de produção (os salários perdem seu valor real com uma inflação controlada, que permita a sua diminuição sem afetar o setor produtivo; em outras palavras, há inflação, mas sob controle).
6. Com o enfraquecimento dos sindicatos, há a diminuição dos direitos sociais, especialmente os direitos constitucionais do trabalhador, o que significa um retorno às características da terceira fase evolutiva do Estado.
Nas economias periféricas, em que o Estado Social é muito mais frágil, esse processo ocorre com maior velocidade e profundidade, trazendo um novo e importante dado: o capital globalizado começa a se deslocar com enorme facilidade à procura de Estados que lhe ofereçam melhores condições para expansão dos seus lucros. Ao contrário do Estado Social fascista, no qual o grande capital se tornou nacional para defender seus interesses, agora o grande capital é apátrida, não tendo nenhum compromisso com o Estado nacional, que se enfraquece cada vez mais diante da impossibilidade de controlar a economia e o poder econômico privado.
Esse fato faz com que ocorra uma migração do investimento – principalmente da Europa, onde o Estado, por exigência de uma população informada e organizada, é ainda alto – para Estados do Terceiro Mundo. Talvez este seja um golpe fatal no Estado Social. Não podendo ignorar a globalização da economia, os governos europeus conservadores, e mesmo os de tendência social-democrata, procuram de certa forma estabelecer as condições exigidas pelo capital.
Recentemente a população européia disse não ao neoliberalismo, quando colocou no poder os socialistas e trabalhistas em grande parte dos Estados. Resta saber sobre a possibilidade de se construir uma alternativa econômica capaz de manter a segurança social com crescimento econômico e geração de emprego. Se isso não ocorrer, o que vem a seguir já foi anunciado: com a crise do Estado Social e Democrático de Direito, a inviabilidade de uma solução socialista, o fim do liberalismo e a farsa da solução neoliberal, os europeus anunciam o neofascismo, força parlamentar importante hoje na Noruega e na Áustria, e conquistando espaço na Alemanha, na França e em quase toda Europa Central e Oriental.19

2.3 A GLOBALIZAÇÃO

O que é a globalização? Para responder a essa pergunta vamos consultar os mais recentes estudos sobre a questão.
Para Jean Luc Ferrandérry, a globalização é um conceito que apareceu no meio da década de 80, nas escolas de negócios norte-americanas e na imprensa anglo-saxã. Essa expressão designa um movimento complexo de abertura de fronteiras econômicas e de desregulamentação, que permite às atividades econômicas capitalistas estenderem seu campo de ação no planeta. O aparecimento de instrumentos de telecomunicação extremamente eficientes permitiu a viabilidade desse conceito, reduzindo as distâncias a nada. O fim do Bloco Soviético e o aparente triunfo planetário do modelo neoliberal no início dos anos 90 parecem dar a essa noção uma validade histórica. Na França foi escolhido o nome mundialização para substituir globalização, que insiste, particularmente, sobre a dimensão geográfica e tentacular, sem esquecer o sentido original.20
Podemos então dizer que o termo globalização tem sua origem na literatura destinada às firmas multinacionais, designando inicialmente um fenômeno limitado a uma mundialização da demanda se enriquecendo com o tempo até o ponto de ser identificada atualmente a uma nova fase da economia mundial.
Não há, entretanto, uniformidade na conceituação do termo, podendo-se encontrar quatro significados distintos mas semelhantes:

1. Théodore Levitt propõe este termo para designar a convergência de mercados no mundo inteiro. Globalização e tecnologia serão os dois principais fatores que fazem as relações internacionais. Em conseqüência, a sociedade global opera com constância e resolução, com custos relativamente baixos, como se o mundo inteiro (ou as principais regiões) constituíssem uma entidade única; ela vende a mesma coisa, da mesma maneira em todos os lugares.21 Nesse sentido, a globalização dos mercados se opõe à visão anterior de um ciclo de produção, que consistia na venda ao países menos avançados dos produtos que ficaram obsoletos nos países mais ricos. O termo se aplica mais à gestão da multinacionais e diz respeito exclusivamente às trocas internacionais.22
2. Em 1990, esta noção é estendida por Kenichi Ohmae ao conjunto da cadeia de criação do valor (pesquisa-desenvolvimento [P-D], engenharia, produção, mercado, serviços e finanças). Se num primeiro momento uma empresa exporta a partir de sua base nacional, ela estabelece em seguida serviços de vendas no estrangeiro, depois produzidos na localidade e, ulteriormente, ainda estabelece uma medida completa da cadeia de valor na sua filial. Este processo converge em direção a uma quinta etapa: a integração global, uma vez que as empresas que pertencem a um mesmo grupo conduzem o seu P-D, financiam seus investimentos e recrutam pessoal em escala mundial. Dessa forma globalização designa ainda uma forma de gestão, totalmente integrada em escala mundial da grande empresa multinacional.23
3. Desde que essas multinacionais representam uma fração importante da produção mundial, os diversos espaços nacionais se encontram obrigados a se ajustarem às suas exigências, pelo fato da extrema mobilidade de que elas se beneficiam hoje (comércio, investimento, finanças e P-D). Assim, a globalização significa o processo através do qual as empresas – as mais internacionalizadas – tentam redefinir a seu proveito as regras do jogo antes impostas pelos Estados-Nação. Nessa conceituação deixamos o domínio da gestão interna das empresas para abordarmos a questão da arquitetura do sistema internacional. Passamos da micro para a macroeconomia, das regras da boa gestão da economia privada para o estabelecimento de políticas econômicas e a construção ou redefinição das instituições nacionais. Essa noção evoca muito mais o processo em curso do que um estado final do regime internacional que substituirá aquele de Bretton-Woods. Constantemente, alguns sublinham o caráter irreversível das tendências em curso diante impotência das políticas tradicionais dos governos frente as estratégias das grandes empresas.
4. Finalmente, a globalização pode significar uma nova configuração que marca a ruptura em relação às etapas precedentes da economia internacional. Antes, a economia era internacional, pois sua evolução era determinada pela interação de processos operacionais essencialmente no nível dos Estados-Nação. No período contemporâneo vemos emergir uma economia globalizada na qual as economias nacionais serão decompostas e, posteriormente, rearticuladas no seio de um sistema de transações e de processos que operam diretamente no nível internacional. Essa definição é a mais geral e sistemática. De uma parte, os Estados-Nação, e, por conseqüência, os governos nacionais, perdem toda a capacidade de influenciar as evoluções econômicas nacionais, a ponto de as instituições centralizadas herdadas do pós-guerra cederam lugar a entidades regionais ou urbanas, ponto de apoio necessário da rede tecida pelas multinacionais. De outro lado, os territórios submetidos a esse novo modelo ficam fortemente interdependentes, a ponto de manifestar evoluções sincronizadas, por vezes idênticas, mas em todo caso em via de homogeinização. Adeus, portanto, ao compromisso político nacional e à noção mesmo de conjuntura local.
2.4 A ALTERNATIVA

Adeus ao compromisso nacional e à noção de conjuntura local?
Olivier Dolfus afirma:

“A mundialização não suprimiu as atividades locais, de proximidade: como aquelas do cabeleireiro ou da escola maternal. Alguns processos, locais, não têm influência e seus efeitos sobre o lugar se apagam rápido (a fumaça de uma chaminé). Mais adicionados na escala global, produzem fenômenos de uma natureza diversa que intervém em níveis espaciais e temporais sem uma medida comum com os fluxos modestos originais. Desta forma nada será mais falso que pensar que do local ao global, os fenômenos se repetem um dentro do outro como as bonecas russas. Praticamente, a cada nível, eles mudam de valor, senão de natureza ou de sentido: alguns se somam, outros se multiplicam e outros se anulam.”24

Por tudo que estudamos até aqui, percebemos que permanece uma grande interrogação: para onde ir ? O neoliberalismo não é capaz de responder às necessidades de trabalho e bem-estar social da população mundial; o socialismo real está ameaçado de desaparecimento, assim como muito o liberalismo clássico morreu para não mais voltar; e o Estado Social está em crise de difícil solução, pois que mergulhado num mundo globalizado. Para onde ir?
A resposta está na construção da sexta fase de evolução do Estado, uma alternativa de uma democracia participativa que deve ser construída em nível local, na cidade – espaço da cidadania –, encontrando um novo papel para o Estado e para a Constituição.25
Todos os três tipos de Estados que já estudamos, nas suas variadas formas e nas distintas fases de evolução, têm um ponto fundamental em comum: todos estabelecem na Constituição um modelo de sociedade e de economia. Seja o modelo liberal, cuja regra básica é a não-intervenção no domínio econômico, numa sociedade que tem como valor principal o individualismo e a propriedade privada; seja no Estado Socialista, que tem Constituições que estabelecem uma economia e uma sociedade socialista, com fundamentos e valores coletivos, até o Estado Social, modelo de Constituição eclética, na qual convivem lado a lado os princípios dos tipos de Estados ortodoxos socialista e liberal, invariavelmente as Constituições, a partir do século XVIII, estabelecem um modelo de Estado, de sociedade e de economia que deve ser obrigatoriamente seguido por todos os cidadãos. Os que não seguem o modelo posto são os excluídos, os miseráveis, os loucos e os presos, marginais do sistema.
O papel do Direito, da Constituição, é o de estabelecer as margens, os limites dessa sociedade, e, embora estes limites sejam cada vez mais amplos, eles continuam a existir como requisito e mesmo razão de ser do Estado.
Assim, o Estado tem como finalidade importante a função de reagir e conservar. Conservar o modelo de sociedade e reagir com sua força a qualquer tentativa de mudança fora das permitidas pelo modelo posto. Mesmo com o atual enfraquecimento do Estado Nacional, este ainda é importante no sistema globalizado para reagir a qualquer tentativa de mudança fora dos limites estabelecidos, agora, pelo grande capital globalizado, conservando o modelo existente e seus interesses e sistema de privilégios.
No lugar desse Estado reacionário, nas suas formas liberal, socialista, social-liberal, social-fascista e neoliberal, devemos propor um Estado democrático, onde a Constituição nacional garanta os processos democráticos de constante mudança da sociedade, com respeito aos direitos humanos universais não culturais, deixando que cada Município estabeleça na sua Constituição, de forma livre e democrática, o seu próprio modelo de sociedade, de economia, de repartição de riquezas e de convívio social, desde que respeitados os processos democráticos da Constituição nacional, e que sejam respeitados os princípios universais de direitos humanos.
O caminho em direção ao novo poder das cidades, o poder local, hoje é sentido de maneira inequívoca em todo o mundo. Os mecanismos, princípios, modificações estruturais na administração municipal são estudados no nosso livro Poder Municipal: paradigmas para o Estado constitucional brasileiro, para o qual remetemos o leitor para compreensão da alternativa democrática proposta.

Para finalizar este item, classificamos os direitos individuais de acordo com Constituições contemporâneas, como a seguir:

1. Igualdade jurídica (fundamento de todos os outros direitos individuais)
2. Liberdades físicas:
2.1. liberdade de locomoção;
2.2. segurança individual;
2.3. inviolabilidade de domicílio;
2.4. liberdade de reunião;
2.5. liberdade de associação.
3. Liberdade de expressão:
3.1. liberdade de palavra e de prestar informações;
3.2. liberdade de imprensa;
3.3. liberdade de arte;
3.4. liberdade de ciências;
3.5. liberdade de culto;
3.6. sigilo de correspondência, de comunicações telefônicas e telegráficas.
4. Liberdade de consciência:
4.1. religiosa;
4.2. filosófica;
4.3. política;
4.4. liberdade de não emitir o pensamento.
5. Propriedade privada (Direito).
6. direito de petição e de representação.
7. Garantias Processuais (Garantias de eficácia propriamente ditas):
7.1. habeas corpus;
7.2. habeas data;
7.3. mandado de segurança;
7.4. mandado de injunção;
7.5. ação popular;
7.6. ação direta de inconstitucionalidade por ação e omissão;
7.7. princípios fundamentais de Direito Processual:
7.7.1. garantia da tutela jurisdicional;
7.7.2. o devido processo legal;
7.7.3. o juiz natural;
7.7.4. ainstrução contraditória;
7.7.5. ampla defesa;
7.7.6. acesso à Justiça;
7.7.7. publicidade.

2 comentários:

  1. muito bom professor, parabéns pelo ótimo texto.

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  2. Texto de extrema valia acadêmica e de grande compreensão histórica. Abriu minha mente para o neoliberalismo, sobre o qual só tinha boas noções.

    Que bom que temos ainda bons pensadores e tradutores da nossa história e da realidade social.

    Pergunto apenas somente: Será que o fato do grande capital estar fugindo da Europa, como vemos nesta crise que estes estão vivendo, poderá ter a volta de um Estado Nacionalista (como fascistas e nazistas), para a proteção de suas economias?

    Para a resposta deixo o meu email: marcosmartinscosta@yahoo.com.br

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