quarta-feira, 15 de junho de 2011

467- Federalismo - Livro - 17 - natureza do poder constituinte

2.3. Natureza do Poder Constituinte


José Luiz Quadros de Magalhães

Tatiana Ribeiro de Souza



Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sinônimo de lei positiva posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente nesse ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nessa perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o Direito a regra, transformando construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto.

O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação à ordem com a qual rompe e pela qual não se limita. Essa afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, pois é o poder de transformação social da própria história. Nesse recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional que afete seus princípios fundamentais, criando, na verdade, uma nova Constituição. Esses mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica que, como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa apenas em representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar, entretanto, que esses milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas não há como proteger esses milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isso nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas como são exemplo o que ocorreu na Venezuela, Bolívia e Equador neste inicio de século XXI.

Retornando à discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que se entendermos, entretanto, que o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do Direito natural. Nesse sentido, o Direito é sinônimo de justo e, logo, a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se contiver uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas várias teorias é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo essa hipótese, o poder constituinte originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e, ao contrário, será mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do correto, do direito.

Não nos filiamos ao pensamento do Direito natural por o considerarmos elitista. Ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete dessa vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo?

Por esse motivo, entendemos que somente processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular podem justificar uma ruptura que, sendo fato irresistível, se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será essa compreensão dialogicamente compartilhada em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o Direito e sua compreensão e transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.

Portanto, podemos concluir que esse poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático entendendo-se por democrático um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.

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