domingo, 10 de julho de 2011

541- Crônicas do Bala (Ausgusto Vieira) - Engolindo Sapo e Estórias da Roça

ENGOLINDO SAPO

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                                      Acordou com muito pouco juízo e com as melhores das más intenções? Deu naquele “senecto”, com filhos casados, independentes, e netos, que hoje exercia, quase com exclusividade, a profissão de “avotorista da Transneto”, aquela vontade louca de voltar aos tempos de juventude e ir a uma boate de mulheres de programa para ver shows de strip-tease. Mas, sozinho? Trair a cara-metade? Não! Absolutamente, não! Logo ela, tão boazinha? Um amigo, uma semana antes, até a elogiara, numa festa, dizendo que estava nova e conservada. Respondeu, brincando, que era porque era pouco usada. Resolveu, então, revelar à esposa o desejo. Compreensiva, como sempre, ela respondeu que iria. Afinal, nestes novos tempos, numa cidade grande, quem iria se lixar para o fato de um casal sexagenário ir a uma boate barra pesada? Emocionou-se, mais uma vez, perante tanta compreensão. Que mulher extraordinária! Que grande companheira!
                                      Vestidos a caráter, como nos áureos tempos de namoro, mal anoiteceu, saíram de casa e foram a um barzinho, onde beberam vários chopes, para esquentar. Lá pelas onze da noite, chegaram à porta da boate. Recebidos por um porteiro elegantíssimo, que pegou a chave do carro para guardá-lo na garagem, se envaideceram quando outro, tão elegante quanto, abriu imensa porta de madeira e, gentilmente, os conduziu até outra, de vidro que, aberta, fez vibrar-lhes os tímpanos com o agitado som da moderna música mecânica. Um elegante garçom os conduziu até um camarote, em frente à pista que era, ao mesmo tempo, palco dos shows. Apresentou-se e disse que estaria à disposição do casal até o fim da noite. Entusiasmados, pediram uma garrafa de champanha francesa, das melhores, que foi servida pelo gentil homem de gravata borboleta. Beberam e assistiram a vários strip-teases de lindas mulheres, em intervalos de meia em meia hora.  Em menos de duas horas, já haviam secado a garrafa. Pediram a conta, pagaram no cartão de crédito, deram uma boa gorjeta ao garçom e, felizes, voltaram ao lar doce lar onde, entusiasmados, se amaram como nos velhos tempos.
                                      Dia seguinte o marido inventou uma reunião de trabalho e, lá pelas dez horas da noite, retornou à boate. Foi recebido com as mesmas honrarias e levado a outro camarote pelo mesmo garçom que, ao lhe servir a primeira dose de uísque, disse:
                                      — Doutor, olha só quantas gatinhas lindas. Pelo amor de Deus, doutor, quem é aquele bagulho que o senhor trouxe aqui ontem?

ESTÓRIAS DA ROÇA

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                                      João Doido, desempregado, quase estava morrendo de fome na cidade, resolveu aventurar-se no trabalho rural. Chegou a uma fazenda que precisava de um vaqueiro. Mentiu, por necessidade de sobreviver, e disse que entendia tudo do riscado. Havia ali um boi que dava muito trabalho. Daqueles que sempre se desgarravam do rebanho e desapareciam pelas imensas veredas e matas. Ninguém conseguia prendê-lo. Um dia, depois do almoço, saíram ao encalço do incrível ruminante. O mentiroso, por sorte, escolheu o melhor cavalo da tropa e o selou. Logo, passou à frente dos demais. Avistou o boi num descampado. Pressentindo captura, o animal começou a correr feito louco. E o melhor cavalo saiu, em disparada, a seu encalço. E o falso vaqueiro, na sela, tremendo de medo. Tão tenso que, com os solavancos que o corpo sofria, seu intestino começou a roncar e a acusar aquele “dilurimento”. Era o almoço descendo. E lá vai ele, em disparada, perseguindo o boi, até as proximidades de uma cerca, antes da qual havia um capoeirão, com imenso buraco, margeando-a. Quando o boi se viu encurralado e sentiu que não dava para transpor a cerca, parou, fez uma volta e ficou mugindo, ferozmente, de frente para o cavaleiro. A velocidade do cavalo era tamanha que foi impossível diminuir a marcha. Abalroou o boi que, perdendo o equilíbrio, caiu no abismo e ali permaneceu, sem conseguir sair e desvencilhar-se das ramagens e dos espinhos. Por sorte, cavalo e cavaleiro não foram juntos. João Doido manteve-se na sela, mas, infelizmente, não conseguiu prender a massa que lhe agitava o intestino. Mal o cavalo se pôs de pé, borrou-se todo. Os demais vaqueiros, mais de dez, foram se aproximando. Ele permaneceu como estava, calado e imóvel, na sela, com o corpo ereto. Perguntaram pelo boi. Respondeu que estava no capoeirão e que poderiam laçá-lo. Um dos vaqueiros, no entanto, sentiu aquele cheiro estranho, aproximou-se de João Doido e fulminou:
                                      — Que qui é isso, sô moço, tá todo borrado.
                                      Ao que ele, altivo, retrucou:
                                      — Fique ocêis sabeno qui ocêis nunca havia consiguido pegá esse danado desse boi pruquê ocêis parava pra cagá.

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                                      Tico Sabiá, analfabeto, nunca tinha ido a uma cidade ou visto um trem de ferro. Recebeu ordem do patrão para vigiar umas reses para que elas não transpusessem uma cerca, às margens de uma linha férrea. Distraiu-se, numa tarde, e algumas reses conseguiram romper o arame e se deitarem sobre os trilhos. De repente, um apito por ele nunca ouvido. O cabra vê a imensa locomotiva, cuspindo fumaça. Subiu na linha e, abanando os braços, com o chapéu de couro numa das mãos, tentava parar aquela monstruosidade. Conseguiu apenas espantar duas ou três reses. E a geringonça, cada vez mais perto, atropelou duas reses, jogando seus corpos, quase dilacerados, às margens da ferrovia. Não tivesse o infeliz saltado dos trilhos, no momento exato, teria sido também estraçalhado. Tico Sabiá recompôs-se, limpou a poeira do corpo e, mal se pôs de pé, chegou o patrão e lhe deu a maior bronca. E ele:
                                      — Óia, patrãozinho, aquele monstro matô só duas vaca pruquê vêi di cumprido. Se tivesse vindo de banda num sobrava nem a sede da fazenda do sinhori...
                                      E por ali foi ficando o aprendiz de vaqueiro, até o dia em que o patrão levou-o para conhecer a cidade. Era véspera de Natal. O patrão foi ao Banco e o deixou em frente a uma loja, esperando. Tico Sabiá viu, na vitrine da loja, montado e girando nos trilhos, um trenzinho elétrico. Pegou o primeiro porrete que encontrou, quebrou o vidro, entrou na vitrine tal qual um guerreiro e, aos gritos, destruiu completamente o brinquedo. Seguro pelos empregados, interpelado, respondeu ao dono da loja:
                                      — É pruquê ocêis num sabe cuma é qui esse bichinho qui eu cabei de matá fica pirigoso dispois de grande...

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                                      Pedro Traíra e Tone Cornélio haviam sido criados na mesma fazenda, ambos filhos de vaqueiros da melhor qualidade. Aprenderam, com os pais, a profissão. Estudaram as primeiras letras na mesma escolinha rural e não puderam prosseguir nos estudos. Tornaram-se também vaqueiros. Desde a juventude, na escolinha, apaixonaram-se por Dadivosa, linda menina, morena, faceira que só ela. Logo que descobriu o interesse dos dois, sentiu-se envaidecida e incentivava a competição que travavam, na tentativa de conquistar-lhe o coração. O tempo passava e eles eram seus pares constantes nas festas, em que ela era alvo das mais significativas gentilezas. Os dois, até para fazerem bonito para a amada, tornaram-se os melhores vaqueiros da região. Nenhum deles, no entanto, talvez por mútuo respeito, revelava, ao outro ou à moça, seus sentimentos, guardados a sete chaves. Até o dia em que Tone Cornélio criou coragem, quebrou o silêncio e abriu o jogo. Expressou o antigo amor e pediu-a, ao pai, em casamento. O velho concordou e ainda achou bom, já que o pretendente era moço próspero, trabalhador e honesto. E casaram-se, num festão, comentado, por muito tempo, nas redondezas. Logo, veio o único filho do casal, que deram a Pedro Traíra para batizar. Outro festão.
                                      E a vida seguia, sem que o antigo amor fosse preenchido no triste coração do compadre solteiro. A mulher, sempre faceira, cobria o compadre de gentilezas, insinuava-se a ele, chamava-o para dançar, nas festas, sem que isso provocasse ciúmes no marido, que o tinha como pessoa de absoluta confiança. O inexorável tempo, remédio e juiz de todas as coisas, ora melancólico, ora alegre, fluía como um deus matreiro, até os três alcançarem idades quase provectas, convivendo harmoniosamente.
                                      Numa tarde de domingo, o compadre, solteirão, resolveu visitar o casal e o afilhado. Arreou seu melhor cavalo e pegou estrada. Ao chegar, a comadre o recebeu. Perguntou pelos dois e obteve a resposta de que haviam saído à procura de um bezerro que havia desaparecido, mas deveriam retornar logo. A comadre, então, convidou-o a entrar. Desceu do cavalo e sentou-se numa cadeira da pequena varanda. Ela, à sua frente, noutra, com um vestido de cetim, quase transparente, que mal lhe cobria os joelhos. Conversaram sobre o tempo, sobre a colheita, sobre pessoas conhecidas, enfim, todos aqueles assuntos de praxe naquelas visitas, até a comadre dizer que iria à cozinha preparar o jantar. O visitante ficou, sozinho, na varanda. E nada de o compadre voltar do campo...
                                      De repente, assalta-lhe o irrefreável desejo, há tantos anos, reprimido. Viu-se, jovem, dançando com a comadre, agarradinhos, com seus corpos grudados um ao outro. Não resistiu, levantou-se e foi à cozinha. A comadre não se surpreendeu, pois ele era de casa. Mandou que se sentasse num banquinho e continuou, tranquila, seu mister, à beira do fogão de lenha. O compadre resolveu fazer um cigarro de palha. Volta e meia, desviava o olhar para os lados de seu único amor, mirando-lhe as curvas do esguio corpo, ainda de belas carnes, socadas, em movimentos leves e suaves, especialmente quando se inclinava para soprar o braseiro. Sob incontroláveis impulsos, do coração e da carne, parou de cortar o fumo de rolo e reclamou:
                                      — Comadre, o compadre está demorando muito, acho que vou embora.
                                      — Vai não, compadre, espera. Ele já deve estar chegando. O senhor podia jantar conosco.
                                      — Comadre, gosto muito da senhora e a desejo minha mulher, desde o tempo em que era moço. Estamos sós, aqui. A senhora é que vai resolver. Ou a senhora côa um café, bem forte, pra nós, ou vamos fazer aquelas coisas boas.
                                      A comadre, faceira como sempre, na maior naturalidade, foi logo tirando as panelas do fogo para, charmosamente sorrindo, responder:
                                      — Uai, compadre, não é que o senhor me pegou sem pó de café?

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                                      Aquele, sim, é que era um capataz de confiança. Bom de gatilho, excelente vaqueiro, tocador de viola, valente e forte como um touro. Já trabalhava na fazenda há mais de vinte anos. Mandara uns quatro cabras safados comer capim pela raiz, por causa do patrão que, propriamente falando, não lhe ordenava matar ninguém: simplesmente dizia ao leal escudeiro que estava com antipatia de determinada pessoa. Essa palavra era o código. Pouco depois o dito cujo se despedia deste vasto e perigoso mundão de Deus, com um furo de bala dundum do lado esquerdo do peito.
                                      O patrão era herdeiro único daquela fortuna, lotada daqueles bois brancos, gordíssimos, que passavam a maior parte de suas vidas com a cabeça inclinada para baixo e a boca colada ao fértil solo, pastando, calmamente, aquele nutritivo capim nativo. Criado na mordomia, não era muito chegado ao trabalho. Recebera muito peixe e não se habituara a pescar. Gostava mesmo era de praticar esportes de alcova. E não media esforços nem dinheiro para tal. Com a gorda, alegre e palradeira esposa, apadrinhara o casamento do capataz com Toínha, moça faceira, criada na fazenda e que, sobre ser prendada, ativa e caprichosa, se transformara na mais cobiçada beleza matuta das redondezas. Logo após o casamento, começou a mandar o capataz entregar boiadas em plagas longínquas, vários dias de viagem. E o assédio era diário e sutil. A empreitada, em tais circunstâncias, só poderia ser vitoriosa.
                                      Um belo dia, o capataz aproximou-se do patrão e, em tom grave, disse:
                                      — Patrão, preciso ter uma conversa muito séria com o senhor.
                                      O homem tremeu na hora. O que será, meu Deus? Será que ele está desconfiando? Será que ela contou? Mas controlou-se, pensou um pouco e jogou água fria na fogueira, combinando que, no sábado, iriam à cidade e conversariam.
                                      Cedinho, mal o galo cantou pela primeira vez, sem que ninguém ainda tivesse acordado, saíram na caminhonete, os dois na boleia, taciturnos. O único ruído que se ouvia era o do motor do veículo. Quando o sol já esquentava, o capataz rompeu o silêncio:
                                      — Patrão, chegou a hora de nossa conversa séria.
                                      Novo tremor, desta vez nas pernas. A única coisa que conseguiu fazer foi por a mão direita na coronha do 38 que, deliberadamente, colocara na cintura. Era só dar logo um tiro certeiro, à queima-roupa, e deixar o corpo naquele geraizão. Quem desconfiaria?

                                      — Desembucha logo, cabra.
                                      O capataz, na maior tranquilidade:
                                      — Patrão, Toínha tá traindo nós dois?!?!

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                                      O compadre e a comadre, na ausência do compadre, resolveram transar. Amor antigo recolhido. Só que a coisa foi boa demais e eles, esgotados, esqueceram-se de que o compadre voltaria cedinho de uma viagem. Apagaram e, quase o dia amanhecendo, acordaram com o barulho da chegança. O compadre levantou, vestiu as roupas ligeirinho, calçou as botinas e saiu do quarto, pisando duro. Cruzou com o compadre na sala, passou direto, de cara fechada, sem nada dizer. O compadre entrou em seu quarto e perguntou à mulher:
                                      — Sô amigo do cumpade há mais de quarenta ano e, pela premera vez, ele passô pru mim, de cara fechada e nem me cumprimentô. O qui acunteceu?

                                      — Curpa sua!
                                      — Curpa minha? Pru quê?
                                      — Ele vêi aqui pidi a ispingarda imprestado, mas ancê tinha dito qui ela era de istimação e não imprestava pra ninguém?!?!

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                                      Zeferino, sitiante na beira do Rio Verde, tinha o maior ciúme de sua junta de bois. O compadre Juquita precisava arar uma terra e a pediu emprestada. Depois de muito relutar, Zeferino atende o amigo, mas recomenda:
                                      — Óia, cumpade, tem o maió cuidado pruquê ês tão cumigo desde bizirrim e eu nunca imprestei pra alguém.
                                      — Podexá, cumpade, vou tratá seus boi mió do qui trato muié e fio.
                                      Começa o serviço. Arava à beira de uma grota, quando um dos bois escorrega, cai e quebra uma perna. Teve de executá-lo. Como dizer o acontecido ao compadre? Três dias depois, chega, macambúzio, ao sítio de Zeferino.
                                      — Dia, cumpade.
                                      — Dia.
                                      — Óia, cumpade, nunca vi junta tão boa. imagina qui gostei tanto deles qui vim propô comprá os boi pelo preço qui ocê pidi.
                                      — Num tem preço. Nem todo ouro do mundo tira aquês boi di mim.
                                      — Mas, cumpade, ocê num vai levá ês quando morrê.
                                      — Se pudesse, levava.
                                      — Põe preço, cumpade, eu pago.
                                      — Já disse, num tem preço.
                                      — bão, vou falá logo a verdade. Nóis é muito amigo e eu triste. Um dês morreu onte. Iscorregô
no grotão, quebrou uma perna e tive qui matá.
                                      — Bão, cumpade, nesse causo os boi já têm preço...

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