sexta-feira, 21 de outubro de 2011

762- In Gold they trust - Coluna do professor Virgilio Mattos


IN GOLD THEY TRUST[1]
                   (Sempre sob a proteção de deus)
                          Virgílio de Mattos[2]
         Uma organização de ensino jesuíta – quem diria?! – convida-me para debater o tema AS CONVICÇÕES RELIGIOSAS DEVEM SER CONSIDERADAS NAS DECISÕES E NOS DEBATES POLÍTICOS, EM CONTEXTO DE PLURALISMO?
         Não sou o mais indicado para essa questão/dúvida, pois que à pergunta impõe-se um sonoro e definitivo NÃO como resposta. Rápido, simples, irretorquível.
         Não chega a ser uma questão propriamente, talvez uma das questões fundamentais seja por que “a garantia incondicional da propriedade privada absoluta só pode existir ali onde a religião seja uma questão privada, onde novamente ela seja também o princípio regente”? E isto não é dito por um teórico marxista, mas pelo mais elaborado pensador nazista, embora Menelick de Carvalho Netto a denomine (pensar Schmitt como teórico nazista) de equivocada porque não havia um Reich em 1925, e nessa parte – a inexistência de um Reich em 1925 - ele tem razão.
         Não pesquiso convicções religiosas, muito menos pluralismo. Mas creio que gostariam de dar voz, ainda que na qualidade de debatedor, a um agnóstico convicto. Muito simples, sincero e tranquilo com isso, mas convicto. Embora conviva bem com todos aqueles que respeitam o que dizem que disse deus (não importando muito o seu nome em uma teologia monoteísta), nutro uma antipatia difícil de esconder, mesmo se quisesse, quando percebo que utilizam a máscara da religião para venda de um lugar no céu. A maioria dos que conheço, vários jesuítas inclusive e sobretudo, fazem o jogo do lucro com a palavra do Senhor. Talvez este o punctum saliens do convite.  Ou mesmo a ideia de um complexio oppositorum que o perigosíssimo Carl Schmitt desenvolvia no seu Catolicismo Romano e Forma Política, onde já de início advertia:
         Há aqui, nas forças religiosas e políticas, um sentimento anti-Romano que alimentou a luta contra o Jesuitismo, o papismo e o clericanismo, e que impulsionou a história européia por séculos. Não somente sectários fanáticos, mas gerações inteiras de pios protestantes e de cristãos gregos ortodoxos viram em Roma o anticristo ou a prostituta babilônica do apocalipse. O poder mítico dessa imagem é mais profundo e mais forte do que qualquer cálculo econômico; e seus efeitos de longa duração”.[3]
         De formação criminólogo, penso sempre a clássica pergunta primeva: “a quem interessa?” Antes de tudo, antes mesmo do desjejum cotidiano de um militante de direitos humanos, que basicamente consiste em comer uma fruta, beber uma caneca de chá acompanhada de umas fatias de pão com queijo, recém chegado à classe “C”, que cresceu como “nunca antes na história desse país”, e escolher que inimigo combater naquele dia. A fila é sempre imensa. A escolha por quem e onde começar sempre difícil.
         Invariavelmente os prepostos de deus[4] e falsos intérpretes das palavras atribuídas a seu filho estão entre aqueles que merecem ser combatidos, prioritariamente, impiedosamente, assim como têm feito de forma autofágica através dos tempos, a própria igreja católica; não gosto de utilizar a imagem mais é muito própria: em suas lutas intestinas. Não digo mais do que nunca e nem mesmo mais do que antes. Meu espaço é curto como o cobertor do pobre no frio.
         A primeira premissa é a de que todos têm que ser respeitados por suas convicções políticas e religiosas, como estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil[5], a quem muito modestamente emprestei as costas para que fosse aprovada. [Um necessário parêntesis abro: Melhor explicando isto: muita pancada com cassetete da Tropa de Choque da Polícia Militar, em especial a truculenta do Estado de Minas Gerais, de todos os tipos – só não apanhei de tonfa, essa modernidade, mesmo porque não tenho mais idade e nem saúde pras essas coisas] E deu no que deu conforme estamos fartos de apontar. Mas na CRFB, cujo preâmbulo narra que tudo foi feito sob a proteção de deus, grafado em maiúsculas, que não é, tecnicamente, uma constituição ruim, ali assim está expresso: Art. 5º - VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.
         Uma questão que se impõe é por que a interpretação da Constituição, exatamente pela constituição de classe de seus constituintes e intérpretes obrigatórios (cf. Art. 102, caput), não pode garantir a interpretação de si mesma como hipótese de indagação de proteção aos cidadãos contra a proteção de uma constituição que não nos protege contra ela mesma – e aqui Menelick de Carvalho Netto apertaria os olhos e com eles riria concordando e acenando afirmativamente com a cabeça.
         A Constituição não nos protege contra a religião? É óbvio que sim, no texto; mas é também óbvio que não, no cotidiano massacre imposto aos cidadãos pela histeria neopentecostal e também a do papa, aliás Maledetto XVI, como alguns amigos da Itália – grande parte católicos – apodaram o atual sumo pontífice, a meu modesto juízo concorrente forte a ocupar o trono de “um dos piores dos últimos tempos”, em área onde a disputa é dura e a vitória ignóbil. Mas tem feito por onde, admitamos, ao gastar 6 mil euros em uma recente veste, digamos de modo elegante, desnecessária completamente em tempos de ruína econômica, extracomunitários[6] que se matam na travessia para chegar à Europa, fome dantesca na África, apenas para citarmos alguns exemplos óbvios demais.
         Não só por isso, mas também pelos incontáveis e não resolvidos escândalos de pedofilia, abusos, negociatas com bancos e terras, proibição de uso de meios anticonceptivos e campanha contra o aborto, afastada a impossibilidade de a mulher ocupar lugar de destaque na hierarquia, talvez venha perdendo terreno a igreja católica nos corações e mentes dos fiéis.
         Os neopentecostais caminham a passos largos no avanço pela hegemonia religiosa na América Latina segundo os últimos dados censitários, onde acachapante maioria é católica.
         [Outro necessário parêntesis faço, a igreja católica é predominante entre a massa carcerária feminina, tanto entre as presas, quanto entre as agentes.
. Números das presas, em Belo Horizonte, que se declaram católicas é igual a 45%, contra 25% evangélicas/protestantes, confronte-se nosso A VISIBILIDADE DO INVISÍVEL, Belo Horizonte : FMDC, 2008, p. 88.
. Número das agentes, em Belo Horizonte, que se declaram católicas é ainda maior: 66%, contra 35% de todas as outras religiões somadas, confronte-se nosso DE UNIFORME DIFERENTE – O LIVRO DAS AGENTES, Belo Horizonte : FMDC, 2010, p. 42.]
         Um exemplo do mal das religiões, em especial as neopentecostais, foi a árdua tarefa que tivemos em meados da década passada em conter o ímpeto da massa carcerária quando quiseram tirar o “pecúlio” que tinham na “casa” para passar para um pastor neopentecostal que lhes insuflava pelo rádio dizendo que se fizessem isso o Senhor Jesus, do qual ele mesmo possuía não só procuração com amplos poderes como também a contabilidade, mesmo sem inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil – o que é crime previsto no código penal – entraria com um “recurso no processo” (sic) de todas elas, bastando ter fé e, óbvia e necessariamente: fazer o pagamento antes.
         Já são percebidos, em qualquer debate sob religião, aqueles que se declaram “evangélicos não praticantes”, categoria reservada anteriormente apenas aos católicos.
         Nas últimas eleições presidenciais o grande mal produzido pela fé cristã (não excluo os religiosos judaicos, historicamente votantes na direita, qualquer que seja ela) nos custa um preço enorme até hoje.
         O candidato da direita, o fantasmagórico José Serra, travestido de social-democrata, deu de apostar suas fichas – sim, para esse tipo de gente a política não passa de um cassino onde o importante é ganhar, ganhar, ganhar – no segundo turno dizendo-se o candidato do bem (o que é uma meia-verdade, verdade inteira é que sempre foi o candidato dos homens de bens), e que a presidenta Dilma seria a candidata do mal. O que a jogou nos braços dos neopentecostais de forma inapelável, basta vermos as imagens da sua posse.
         Nunca uma imagem foi tão representativa: o feitiço virou-se contra o feiticeiro e sua senhora, em um determinado momento de sua vida, teve que optar por um aborto, o que segue sendo crime nesse país dito de meu deus.
         O aborto, questão introduzida pelo próprio candidato confesso da direita, foi um dos elementos mais significativos para sua derrota. Para citar meu neto, quase sempre muito arguto (não o enganou a neopentecostal conservadora Marina Silva, apresentada como candidata “verde” – as aspas aqui são inevitávies) em suas análises políticas profundas e sintéticas: Bem feito!
         Talvez oportuno darmos de novo voz a Carl Schmitt, um teórico que, na campanha do segundo turno, tanto poderia servir aos neopentecostais, quanto aos protestantes e à própria CNBB que fez um grande desserviço ao país, todos iguais na diferença e o que será que veio fazer nessa discussão Niklas Luhmam, meus deuses?
Vamos de Carl Schmitt:
A ‘privatização’, historicamente considerada, tem suas origens na religião. O primeiro direito individual no sentido da ordem burguesa liberal foi a liberdade de religião.
Ou ainda:
A ciência do Direito pode facilmente assumir uma postura similar à do catolicismo no que se refere à alternação de formas políticas em que ela possa positivamente se alinhar a vários e distintos complexos, desde que haja apenas um mínimo suficiente de forma ‘para estabelecer a ordem.’ Uma vez que a nova situação permita o reconhecimento de uma autoridade, esta fornece uma base para uma ciência do direito - a fundação concreta para uma forma substantiva.
         Foi uma campanha de baixíssimo nível graças, sobretudo, à apelação religiosa, ou melhor; trazer a religião para o debate político o que é um retrocesso, uma excrescência, um absurdo.
         Alguns pontos poderíamos aclarar no debate, penso:
. A ignorância como obra de deus, a fé preenche. A fé como desgraça do demônio é uma contradição em termos: o diabo não é, ou não dizem ser sexo, drogas e rock n’roll? Para a maioria não existe nenhuma ausência de graça nessa tríade do consumo völkisch.
.Assim como o vegetarianismo não-Vegan que pratico, embora não faça apologia ou tente convencer a ninguém, é apenas uma questão de opção, a ausência de religião pode ser considerada como uma religião para que se proteja àquele que não quer sua prática. A propósito: por que um Cristo crucificado em cada sala do Judiciário se o estado é laico?
.A igreja prega na TV, arrecada fundos e não paga impostos, por que só os fiéis pagam dízimos?
. As instituições religiosas não se envergonham da constitucional (Art. 150, VI – b) ordem das limitações do poder de tributar os templos de qualquer culto? Sabemos, imaginamos saber, onde são gastos os vultosos recursos das seitas neopentecostais, mas e o dinheiro da igreja católica, financia exatamente o que no Vaticano? As luxuosas vestes papais? Os escândalos financeiros, exempli gratia  do Banco Ambrosiano? As indenizações nos EUA e Reino Unido devidas pelos abusos dos padres pedófilos ou tudo isso junto?
No chamado “restabelecimento da ordem”, qualquer que seja ela, as religiões cristãs ocidentais, em especial as seitas neopentecostais oriundas dos EUA, sempre estiveram do pior lado, do mais nefasto, que é o fato das igrejas imiscuírem-se na campanha de “demonização” do outro, do diferente, do que não apresenta nenhuma “oportunidade de negócios”.
Para encerrar, oportuna a passagem do Alcorão, 61 (As Fileiras), suras 2 e 3: “Ó vós que credes, por que pregais o que não praticais? É odioso aos olhos de Deus que digais uma coisa e façais outra”.
Ou mesmo a fala de um “teólogo”[7] de quem gosto muito: “Deus, se vier, que venha armado”.
Parece que desde o passado já está dado o recado: a religião deve cuidar da vida dos seus nos limites do divino; no campo do terreno, desde o século XVIII, já temos nossos próprios problemas e não vale a pena agravá-los ainda mais com um preconceituoso e hipotético juízo de deus, já não teriam feito um mal suficiente as Ordálias?
Eram estas as questões de gostaria de trazer ao debate.
Pela atenção da escuta meu muito obrigado.
  


[1] - No ouro eles confiam, aliteração com a inscrição no dólar estadunidense “In God we trust”. Roteiro mínimo de intervenção na FAJE – 20/10/2011.
[2] - Graduado, especialista em ciências penais e mestre em direito pela UFMG. Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Lecce (IT). Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Autor de Crime e Psiquiatria – Preliminares para a Desconstrução das Medidas de Segurança; SEM RUMO & SEM RAZÃO – Mapeamento dos cidadãos submetidos à medida de segurança em Minas Gerais, dentre outros. Advogado criminalista. virgilio@portugalemattos.com.br
                

[3] Ramischer Katholizismus und politísche Form (1925). Carl Schmítt  - Kletc-Cotta, Stuttgart, 1984, p. 9.

[4] - Refiro-me ao deus cristão ocidental a quem se atribui a paternidade de Iesu Christu, ativista político crucificado após ter sido impiedosamente torturado pelo Estado Romano a mando dos religiosos da elite da época.
[5] - Publicada no Diário Oficial da União n. 19-A, de 5 de outubro de 1988. 
[6] - Extracomunitários pobres. A Suíça e os EUA também são compostos de cidadãos extracomunitários sem o menor problema de entrada na Europa, seja para ir conhecer o Vaticano ou não.
[7] - João Guimarães Rosa. Da fala de Riobaldo, em Grande Sertão – Veredas.

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