sábado, 5 de novembro de 2011

786- Eixos de discussão para o novo constitucionalismo na américa do sul - Coluna do professor Jose Luiz Quadros de Magalhães


Eixos de discussão para o novo constitucionalismo na américa do sul.
PLURINACIONALIDADE

O século XXI começou com uma importante novidade: o estado plurinacional enquanto construção social que desafia a teoria constitucional moderna. Embora possamos encontrar traços importantes de transformação do constitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e da Venezuela de 1999 são as constituições do Equador e da Bolívia que efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar inclusive uma ruptura paradigmática não só com o constitucionalismo moderno mas com a própria modernidade.
O processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio para os estudiosos do tema. Como declarou recentemente, em entrevista divulgada por meios impressos e eletrônicos, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, as transformações radicais por que passa a humanidade na contemporaneidade representam um desafio para os intelectuais.
É fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam a estudar e compreender o mundo em que vivemos se dediquem na tarefa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os últimos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo muitas de suas criações. É obvio que uma ruptura, uma mudança paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca será total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o futuro estará impregnado do presente.
Não estamos negando as contribuições da modernidade européia e suas revelações de encobrimentos passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história (não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos, revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações. Muitos dos encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão agora se revelando.
O que pretendemos com este pequeno texto e em outros que se seguirão sobre o tema, é buscar entender as rupturas possíveis no campo da Teoria da Constituição e da Teoria do Estado. Para isto vamos desenvolver reflexões sobre determinados eixos que acreditamos são essenciais para compreender o processo em curso na Bolívia nestes dois anos de experiência da Constituição Plurinacional.
Como proposição inicial de estudo e reflexão analisaremos:
a)      A relação histórica moderna entre Constituição e democracia. O estudo deste aspecto do constitucionalismo moderno é muito importante para entendermos uma das contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera a modernidade européia). O constitucionalismo moderno não nasceu democrático e sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente do movimento operário no decorrer do século XIX.[1] O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível com a democracia majoritária e mesmo após o “casamento” entre constituição e democracia representativa majoritária a resistência do liberalismo sempre foi muito grande.[2] De certa forma assistimos isto até hoje quando os imperativos econômicos liberais impostos pela União Européia (o banco central europeu) e organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional ignoram ou até mesmo combatem mecanismos democráticos representativos que interfiram em pseudo verdades econômicas. O “novo constitucionalismo” que surge na América do Sul trás consigo o conceito de democracia consensual não hegemônica para o qual as construções teóricas modernas dos direitos fundamentais sobre a necessidade de mecanismos contra-majoritários e da existência de vitórias temporárias de argumentos debatidos, podem ser não aplicáveis (veremos isto mais adiante). Não falaremos de argumento vitorioso ou de melhor argumento, o diálogo não será interrompido pela votação e a conquista da maioria, e, logo não serão necessários mecanismos contramajoritários onde a regra será o permanente dialogo não hegemônico com fins de construir consensos sempre temporários. Na democracia majoritária representativa moderna a votação interrompe cada vez mais cedo o debate (não há muito tempo para o diálogo) de forma que em muitas circunstâncias só restou o voto sem debate. É necessário decidir, daí a necessidade do voto. Como a decisão deve ser tomada cada vez mais rapidamente em muitos casos só restou o voto. É a “democracia majoritária” ou a construção de maiorias contra a própria democracia. Este será o eixo desenvolvido neste artigo.
b)      Outro eixo que debateremos será a uniformização “versus” a diversidade. Já escrevemos em outros artigos e ensaios sobre esta dicotomia. O Estado moderno é uniformizador, homogeinizador, normalizador. Desta uniformização depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para que os diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados, que começam a se constituir no século XVI, reconheçam agora o único poder central do Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as identidades pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que pode ser representado com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo os mouros e judeus da península ibérica (simbolizada pela queda de Granada em 1492) e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da uniformização de valores por meio da religião obrigatória que se reflete no direito moderno com a uniformização do direito de família e do direito de propriedade que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como essência da economia moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco nacional, um exército nacional e uma polícia nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito moderno segue este padrão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no direito internacional (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança). Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito a diferença e o direito a diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda maior em se admitir o direito a diversidade como direito coletivo. O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua proposta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como resultado do diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a construção de um novo argumento. Não há uniformização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da compreensão de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um pluralismo epistemológico. A enorme dificuldade do direito moderno em reconhecer a diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalismo plurinacional: este constitucionalismo se constrói sobre a diversidade radical, que é seu fundamento.
c)      Chegamos então ao terceiro eixo: o pluralismo epistemológico, rapidamente mencionado acima e que será desenvolvido oportunamente. Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser sustentação deste novo constitucionalismo.
d)  No quarto eixo de discussão vamos discutir a possibilidade de superação de um sistema monojurídico ou bijurídico (Canada?) por sistemas plurijuridicos que podem ser caracterizados especificamente pela existência de vários direitos de família e de propriedade e da existência de tribunais (judiciários locais) capazes de solucionar estes conflitos além da constituição de tribunais (pluriétinicos e ou plurirepresentativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de construção de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções consensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias de argumentos de uns sobre outros. Assim um judiciário que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido, aponte o argumento vencedor interrompendo o conflito sem solucioná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante. Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argumento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso pois o conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece latente e certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão rápida, pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados, voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser conquistado no Judiciário: o lugar de um argumento vitoriosos, de um lado vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada.
e)      Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-afro-latino americana) não pode passar pelos mecanismos uniformizadores do direito constitucional e internacional modernos.
f)        A superação do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução dialógica não hegemônica do direito “plurinacional”.
g)      A necessidade de busca de um universalismo possível como um desafio teórico filosófico final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e psicanalista Alain Badiou.[5]



[1] ELLEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[2] LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
[5] BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.

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