sexta-feira, 31 de agosto de 2012

1230- A alma do negócio - por Henrique Napoleão Alves



A alma do negócio *


por Henrique Napoleão Alves

Reproduzo as imagens abaixo, com traduções livres dos dizeres principais:
 
Sopre na cara dela e ela te seguirá para onde for“.
 
Para começar melhor a vida, comece a beber refrigerantes de cola desde cedo!
 
Uma caixa de cerveja Blatz em casa significa muito para a jovem mamãe, e, evidentemente, o bebê também se beneficia disso. O malte da cerveja fornece qualidades nutritivas que são essenciais para essa fase…
 
O Chef (trocadilho com a marca da batedeira) faz tudo, menos cozinhar; afinal, é pra isso que servem as esposas!
 
Já não é tempo de você dar a si mesmo um presente de Natal?
 
Quanto mais duro a esposa trabalha, mais bonita ela fica“.
Caramba, querida, você parece mandar tão bem na cozinha, na limpeza e na varredura da casa e eu estou um trapo por ser época de fechamento. Qual o seu segredo?
Vitaminas, querido! Eu sempre tomo minhas vitaminas!
 
“Na manhã de natal, ela ficará mais feliz com uma Hoover (aspirador de pó).”
 
Como a TV beneficia suas crianças“.
Motorola, líder em televisores, mostra como TV é sinônimo de melhor comportamento em casa e melhores notas na escola!
 
Cocaína – drops para dor de dente. Cura instantânea! Preço: 15 centavos de dólar. Venda em todas as farmácias.”
 
Coma, coma, coma! E fique sempre magra! Como? Com lombrigas higienizadas!
 
Impressionante, não? Se a humanidade caminha a passos de formiga, parece que, a julgar pelo fato dessas propagandas provavelmente causarem surpresa e talvez indignação na maioria das pessoas hoje (ou estou sendo muito otimista?), demos alguns passos bem significativos rumo a alguma evolução nas propagandas, certo?
No nosso país, numa recente campanha publicitária de peças íntimas femininas da empresa Hope, a modelo mundialmente famosa Gisele Bündchen ensinava as mulheres a seduzir o marido após bater o carro ou estourar o limite do cartão de crédito. Falar com o marido em roupas comuns é o “errado”; contar pra ele o “problema” trajando uma lingerie sensual é o “certo”!
A modelo mais bem paga do mundo, que arrisca seus primeiros passos também como empresária, é símbolo da mulher moderna, que não depende do marido ou do pai para pagar as suas contas. Ela mostra que a tão sonhada independência financeira é possível – ainda que muitas feministas não aprovem o caminho que ela encontrou para aparecer nas listas da Forbes. E é essa contradição – entre a imagem que Gisele passa ao mundo com o seu trabalho e o conteúdo da propaganda – o que tanto incomoda“, comentou Bárbara Castro em artigo para a Carta Capital (29/09/2011).
A campanha foi criticada pela Secretaria de Políticas das Mulheres, órgão da Presidência da República, e alvo de investigação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), diante de denúncias de que seu conteúdo seria discriminatório. André Vargas, da Revista Veja, chamou essa reação de “moralismo oficial“, e lembrou que, quando a mesma modelo protagonizou uma campanha para a TV paga Sky “onde aparece esfregando chão e limpando janelas, linda e submissa a um marido que não larga o controle remoto“, “[n]inguém reclamou“.
Sinceramente, não sei qual a melhor forma de lidar com a questão, mas tenho a convicção de que campanhas de esclarecimento e debates rumo à formação de um senso comum inclusivo são preferíveis a censuras verticalizadas (que, no caso, vale destacar, jamais ocorreram). Mas quero retomar  o comentário de André Vargas para, de um lado, dizer que definitivamente não me parece que a suposta falta de reação do público ou de órgãos de regulamentação etc. possa ser uma boa justificativa para uma propaganda sexista, como ele sugere; e, de outro, salientar que o comentário de Vargas suscita uma reflexão muito interessante: se as campanhas tiverem mesmo sido tratadas diferentemente, por que isso ocorreu? Por que a campanha da Hope causa furor, mas não a campanha da Sky? Ou, poderíamos acrescentar, as propagandas de produtos de limpeza, como a do Pato Purific, mencionada por Pedro Abramovay?
O humor é uma forma muito eficaz de lidarmos com o trágico, mas ele só pode vir sem causar furor ou indignação se respeitado um certo período de luto. A impressão que tenho é a de que, apesar de muitas mulheres brasileiras ainda serem donas-de-casa sem que isso seja resultado de uma escolha livre e informada, com o aumento muito significativo da inserção das mulheres brasileiras no mercado de trabalho (Bárbara Castro comenta um aumento da taxa de participação da mulher no mercado de trabalho de 32,9% para 59,5% da década de 80 para 2009) o papel social de dona-de-casa não é mais óbvio, mas, ao revés, é visto como um estereótipo ultrapassado pelo imaginário social (ou ao menos, ou principalmente, pelo imaginário das classes consumidoras da TV paga e das peças íntimas….). Já a “estereotipização” da mulher como objeto sexual é algo em disputa hoje na dinâmica da divisão dos papéis sociais e suas representações, e por isso torna-se menos aberta ao humor, ou, em outras palavras, se adéqua menos ao humor que respeita o luto subsequente à tragédia (percebida, ao menos parcialmente, como superada), e mais ao que ridiculariza a tragédia em curso.
Num texto de fins de junho de 2012, intitulado “Notas sobre uma Sessão de Fotos em Bali”, o antropólogo estadunidense Jonathan Square comenta como propagandas da indústria internacional da moda servem-se usualmente de um tipo de composição visual na qual a bela e famosa modelo fotográfica branca é colocada em meio a anônimos não brancos, ilustrando seu argumento com três imagens de diferentes campanhas publicitárias:
Ao comentar essa última foto, em particular, Square diz: “Notem a maneira como os dois homens negros gradualmente desaparecem no fundo escuro enquanto Adriana Lima [a modelo] é assertivamente colocada no plano frontal. Ninguém precisa explicar como ou por que ela está ali. A história da colonização e da supremacia branca global fala por si só. Eu não sou contra pessoas irem a Bali, à República Dominicana, ao Haiti ou a qualquer lugar fora dos Estados Unidos para sessões fotográficas. Eu peço apenas  [às empresas da indústria da moda] que sejam mais respeitosas com as culturas nativas, e que não usem as populações locais [apenas] para destacar a “universalidade”[worldliness] de suas roupas.
Também no Brasil, houve um recente caso de polêmica sobre o tema racial gerada por uma peça publicitária: o banco Caixa Econômica Federal havia veiculado uma propaganda comemorativa dos seus 150 anos de existência na qual mostrava a história de Machado de Assis, que teria sido correntista do banco, representado por um ator branco. Após repercussão negativa, a propaganda foi substituída por uma nova versão, dessa vez mais fiel à verdade histórica, com um Machado de Assis mulato. Pode ser que o erro não tenha sido intencional, mas fruto da falta de conhecimento do autor ou dos autores da propaganda. Mas, mesmo se tiver sido esse o caso, também aí não podemos ver uma influência direta do colonialismo, em pelo menos um sentido, visto que a propaganda foi fruto do trabalho de pessoas que têm presumivelmente um nível de escolaridade alto, e que, ainda assim, não sabiam que Machado de Assis não era branco? Por que raios “branquear” o Machado de Assis?
O humor é um santo remédio para ridicularizar o absurdo, como fez o pessoal dowww.charges.com.br na imagem acima – mas isso ocorre na crítica ao absurdo, não na sua constituição. Desconfio que, a exemplo do caso das campanhas discriminatórias com as mulheres, as propagandas criticadas por Square e a propaganda da Caixa sejam particularmente ofensivas justamente por cuidarem de uma chaga aberta: a da discriminação racial.  Feridas abertas não são sujeitas a serem encaradas simplesmente como humor ou licença poética em campanhas publicitárias sem alguma crueldade envolvida. Quando alguém cai na rua e se espatifa no chão, o riso pode ser instantâneo, mas ele normalmente só prossegue se sabemos que a pessoa que caiu está bem. O humor pode ser algo maravilhoso, sobretudo se não estiver direcionado à desgraça alheia, mas à sua superação. As propagandas em preto e branco do início do post e as prováveis reações que elas geram aos leitores e leitoras ilustram bem isso (apesar de tratarem de contradições apenas parcialmente superadas no nosso imaginário e, menos ainda, no mundo dos fatos).
Que um dia todas essas propagandas que reforçam estereótipos dolorosos possam ser apenas figuras velhas num livro escolar, retratando o tempo em que éramos uns brutos e atrasados. E que provoquem o riso nas crianças do futuro, o riso diante do absurdo ultrapassado, pois houve e haverá pesares e muito esforço para que esse momento seja alcançado.
Obrigado ao amigo Juliano Napoleão pelos comentários a uma versão preliminar do texto.

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