Capitalismo
e modernidade: a guerra contra a natureza
José Luiz Quadros de Magalhães[1]
Qual
a conexão entre paz e meio ambiente? A aparente desconexão é facilmente
superada quando nos valemos da história. Percebemos, a partir de um passeio na
história recente, que paz e meio ambiente estão completamente conectados, e que
a preservação do meio ambiente necessita da conquista da paz, o que por sua vez
só ocorrerá com a substituição radical dos valores que sustentam a relações
humanas e logo as relações internacionais.
Comecemos
pois a desdobrar o parágrafo anterior.
GUERRA E MEIO AMBIENTE
Podemos
fazer uma ligação imediata entre paz e meio ambiente lembrando diversas
passagens de conflitos armados em tempos diferentes da história, e como, gradualmente,
estes conflitos levaram às devastações ambientais crescentes, desde a queima de
florestas, contaminação da água dos rios (como na guerra do Paraguai),
destruição de plantações, a utilização de armas de destruição em larga escala,
até chegarmos à ameaça final da guerra nuclear, passando pelas guerras químicas
e biológicas.
As
devastações do campo e das cidades comprometem o meio ambiente. Os bombardeios
em larga escala desde a segunda guerra mundial até as guerras do Iraque e
Afeganistão no século XXI trouxeram, em muitos casos, prejuízos irreparáveis. Como
exemplos recentes podemos citar a destruição sádica de Dresden (Alemanha 2ª
guerra mundial); de Yroshima e Nagasaki (no Japão, onde pessoas ainda morriam
em razão da bomba décadas depois da detonação); a destruição de Bagdá e de um
acervo histórico de valor incalculável para humanidade, entre outros episódios
lamentáveis.
Entretanto
não é apenas esta a conexão que podemos fazer. Podemos buscar uma conexão menos
aparente para o público em geral, mas de capacidade de destruição continua,
pois se trata de um comprometimento da paz que sustenta todo um sistema
econômico que vivemos na modernidade. O capitalismo e a necessidade da guerra
para a sua sobrevivência.
Respeitando
as dimensões deste texto precisamos delimitar a questão da paz, da guerra, do
meio ambiente e do capitalismo aos séculos XX e XXI, ou seja, a construção da
sociedade de consumo em que vivemos, que nos mergulha em valores que
comprometem a vida humana no planeta, e não o planeta como muitos ressaltam.
Parece
cada vez mais claro que uma sociedade global fundada em valores
individualistas; egoístas; competitivos e materialistas, em uma relação de
consumo e de apropriação de tudo (o que é contraditório na essência), não pode
prosperar muito tempo (mesmo porque a idéia de prosperidade desta sociedade é
material e quantitativa, portanto, inviável do ponto de vista ambiental e
humano). Ou mudamos estes valores que hoje sustentam nossas sociedades ou
acabamos.
Importante lembrar sempre,
que estes valores não são naturais, são históricos. O individualismo, o egoísmo
e a apropriação desenfreada são construções históricas capazes de gerar
subjetividades que podem e são normalmente naturalizadas. Exemplo disto é a
afirmação ainda hoje de direitos naturais, como, por exemplo, o direito de
propriedade. O sentimento de propriedade ou a necessidade de apropriação são
criações culturais históricas. A nossa percepção da nossa condição de seres
históricos é fundamental para enfrentarmos o desafio de construirmos novas
percepções do mundo, uma nova subjetividade, desafio fundamental para a
preservação da humanidade.
Para
compreendermos a relação entre sistema econômico e guerra precisamos relembrar
alguns conceitos importantes da Teoria do Estado. Ao recordarmos estes
conceitos pretendemos oferecer ao leitor elementos de análise crítica que
possam permitir não apenas estabelecer a conexão lógica de um sistema moderno
que se alimenta essencialmente da guerra, como também, a necessidade de
construção de uma nova sociedade política, que permita a construção de relações
internacionais fundadas no diálogo e na diversidade cultural.
Assim,
a paz capaz de preservar o meio ambiente é um caminho a ser construído na
superação do paradigma moderno.
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE: A ERA
EUROPÉIA
Uma
data simbólica nos ajuda a compreender a construção da modernidade européia:
1492.
Por
que esta data? São dois os fatos históricos marcantes que inauguram a
modernidade.
A
era européia.
Em
primeiro lugar, em 1492, Colombo chega a América. Neste momento começa o
processo de expansão militar, conquista e exploração sistemática dos que os
europeus passaram a chamar de recursos naturais: a natureza estava reduzida a
recursos para alimentar a expansão econômica européia. Esta concepção do ser
humano separado da natureza e da natureza como fonte de recursos para este ser
racional (o único) nos acompanhará até hoje. Esta idéia fundamenta a acelerada
e continua degradação ambiental que hoje, mesmo após todos os alertas sobre as
suas conseqüências, continua em ritmo cada vez maior.
Esta
invasão que se inicia na América, ocorrerá nos outros continentes nos 500 anos
de hegemonia militar e cultural européia.[2]
Naquele momento, quando
europeus tomavam terras de uso comum de inúmeras comunidades originárias,
assistíamos ao primeiro grande genocídio humano com milhões de indígenas
assassinados, culturas extintas e o início de uma devastação ambiental com
precedente na mesma Europa de onde vinham os invasores (que se diziam
civilizadores).
O segundo fato histórico
importante no ano de 1492 foi a expulsão dos mouros (muçulmanos) e dos judeus
da península ibérica. Este é o marco para o início da formação do estado
moderno e do seu direito territorial uniformizador, normalizador e hegemônico.
A fundação do estado
nacional e a expansão européia fundam o universalismo europeu[3]
com o qual começamos a romper, lentamente e pontualmente, na contemporaneidade.
Os
mitos modernos começam a ajudar a compreender as bases das sociedades de
exploração de recursos e pessoas que se constroi a partir de então. Boaventura
de Souza Santos[4] menciona
estes mitos: o selvagem; o oriental e a natureza separada do ser humano. Como
visto, destes mitos, que sustentam a exploração da riqueza das Américas pelos
invasores europeus que não consideram os selvagens (os povos originários) como
pessoas, a separação do homem da natureza é um dos fundamentos ideológicos do
sistema que perdura até hoje: a natureza, vista como algo separado de nós
racionais, serve para ser explorada pelos homens, abastecendo a sociedade
humana e sua indústria de todos os recursos que estes necessitarem.
Uma
característica essencial do estado moderno que deve ser levada em consideração
para a compreensão do sistema é o fato deste estado se constituir a partir da
afirmação do poder do Rei diante de dois poderes que ocupam espaços
territoriais distintos: o império com grande dimensão territorial e o poder
local dos senhores feudais. A lógica que sustenta a idéia de soberania externa
(independência) e soberania interna (supremacia de poder) tem uma
característica hegemônica uniformizadora que sustenta a extinção de diversos
povos e diversas culturas, assim como a submissão (temporária ao que parece) de
diversas outras culturas.
Para
que o poder do estado nacional seja reconhecido ele necessita da uniformização
de comportamentos da sua população. O estado moderno expulsa os mais diferentes[5] e
uniformiza valores e comportamentos dos menos diferentes. Assim, para que todos
os grupos étnicos do nascente Estado Espanhol reconheçam a autoridade do Rei,
este não pode se identificar diretamente com nenhum destes grupos.
O
Estado moderno que surge na Europa se pretende hegemônico (superior) em relação
ao outro (estrangeiro) e reproduz internamente a lógica hegemônica e intolerante
com o diferente uma vez que há sempre a dominação de um grupo étnico sobre os
demais.[6]
A
lógica que permanece deste Estado e do Direito por ele produzido é logo
hegemônica e uniformizadora, subordinando pela força e pela ideologia todos que
resistirem a sua supremacia. A ordem internacional também seguiu este modelo o
que aparece expresso no Tratado de Versalhes e na Carta das Nações Unidas
quando esta se refere ao Conselho de Tutela. Da mesma forma o direito
comunitário (que seria uma novidade do pós-guerra) também reproduz o mesmo
modelo hegemônico ao impor um sistema econômico especifico fundado em um
direito de propriedade uniformizador que ignora as imensas diversidades dos
diversos grupos étnicos que habitam o continente europeu.
Algumas
premissas:
a) O estado moderno,
hegemônico e uniformizador é essencialmente violento. Este estado depende das
forças armadas e da policia para sobreviver, instituições que serão
desenvolvidas e profissionalizadas durante os últimos 500 anos.
b) O modelo hegemônico
interno cria as bases da economia capitalista. A moeda nacional, os bancos
nacionais e o aparato repressivo do estado sustentam a economia interna.
c) Este estado reproduz
externamente a lógica hegemônica interna e a sua economia interna ultrapassa
suas fronteiras em uma busca por recursos naturais, humanos e mercados por meio
da conquista militar.
Ou seja, a economia de
exploração da natureza e das pessoas dos últimos quinhentos anos se baseou na
conquista e ocupação militar de todo o planeta pelos europeus. A guerra
permitiu a conquista de territórios de onde foram extraídos (e ainda são) os
recursos naturais que permitem toda a expansão industrial e tecnológica. Desde
o ouro e da prata da América ao coltan (combinação de dois minerais utilizados na
fabricação de aparelhos celulares) da África, o sistema exploratório de
recursos naturais por meio da guerra continua em ação, em larga escala.
AS GUERRAS MUNDIAIS NO SÉCULO XX E A
EXPANSÃO DO CAPITALISMO
A
Revolução Industrial gerou uma expansão econômica sem precedentes. Esta
expansão, entretanto, não proporcionou uma melhoria uniforme do nível de vida
da população. Enormes diferenças sociais criaram cidades industriais inchadas e
desiguais. O fruto da expansão foi apropriado por poucos, os mesmos poucos que
se utilizaram da estrutura do Estado para garantir a segurança de sua riqueza
acumulada e agora necessitam do aparato militar estatal para expandir seus
negócios em busca de mão-de-obra barata, novos mercados e recursos naturais. As
guerras mundiais foram resultados da expansão econômica do século XIX, onde as
potencias econômicas competiam por espaço.
Dentro
deste contexto devemos entender o nazismo e o fascismo italiano e seus
similares em outros países, especialmente no Japão.
No início do século XX havia
uma competição por espaço, entre as seis grandes economias nacionais do planeta
(e obvio as empresas nacionais destes países). De um lado Estados Unidos, Reino
Unido e França com muito espaço para exploração de recursos naturais, mão-de-obra
e mercados (nas suas muitas colônias) e de outro lado potências industriais
importantes (Alemanha era a segunda maior economia industrial em 1910) em busca
do mesmo espaço (Alemanha, Japão e Itália).
A primeira e a segunda guerra
mundial foram frutos do imperialismo do século XIX e da acomodação de áreas de
influência e exploração das grandes potências industriais. Assim Alemanha,
Inglaterra e Japão (representados pelos interesses de seus empresários e de sua
elite política a estes ligados) buscavam os espaços que, por sua vez, Estados
Unidos, Reino Unido e França já haviam tomado.[7]
Este conflito entre potencias industriais capitalistas em nível global é
provisoriamente resolvido com o cenário de pós-guerra, onde agora era
necessária uma Europa ocidental, unida sob o domínio estadunidense, capaz de
barrar a expansão do socialismo no leste europeu sob a influência soviética.
Os inimigos da segunda
guerra se encontram até hoje unidos no grupo dos sete grandes. Exatamente os
mesmos: Estados Unidos; Reino Unido; França; Alemanha; Itália e Japão,
acrescentando o Canadá que na época era formalmente colônia britânica.
A GUERRA COMO NECESSIDADE PARA A
EXPANSÃO ECONÔMICA: ONTEM E HOJE
Assim,
a expansão econômica industrial capitalista da Europa necessitou, e obviamente,
ainda necessita da guerra e da dominação ideológica, para sua expansão.
São
vários os exemplos históricos que comprovam a hipótese levantada:
a)
A
exploração da prata; do cobre e do ouro na América para o financiamento do
Império espanhol;
b)
A
formação do território dos Estados Unidos da América com a invasão das terras
dos povos originários e invasão e anexação de parte do território mexicano rico
em petróleo;
c)
A
exploração do ouro de Minas Gerais enviado para Portugal que ajudou a financiar
a revolução industrial na Inglaterra;
d)
A
expansão territorial alemã em busca de recursos naturais negados àquele país e
aos seus industriais pelo tratado de Versalhes;
e)
A
expansão territorial japonesa sobre a Coréia e China em busca de espaço e
recursos naturais para sua indústria;
f)
A
invasão e repartição da África em muitos Estados artificiais para a exploração de
seus enormes recursos naturais;
g)
A
invasão e repartição do Oriente Médio em diversos Estados
artificiais títeres para a exploração continua dos seus recursos naturais;
h)
Mais
recentemente a invasão do Iraque em busca do petróleo que trouxe um enorme peso
ambiental com a queima de reservas de óleo.
Poderíamos aqui citar
páginas e páginas de relatos de fatos ocorridos nos últimos quinhentos anos de
hegemonia européia, que trouxe consigo a economia capitalista e a acelerada
degradação ambiental. Capitalismo, guerra, degradação ambiental na era europeia
andam juntas e inseparáveis. A paz parece impossível no sistema vigente. Mesmo
que os conflitos tradicionais de guerras entre estados nacionais e exércitos
fardados tendam desaparecer, estes cederam lugar a outras formas de guerra:
guerras civis (como na Colômbia); movimentos guerrilheiros (movimento Zapatista
no México); ações terroristas (Al Qaeda); guerrilha urbana e conflitos
religiosos (Iraque); guerra não convencional (Afeganistão); conflitos urbanos,
tráfico de drogas, criminalidade organizada ou não organizada (nas metrópoles
do mundo).
Se a mundialização do
sistema capitalista sustentada por uma questionável democracia representativa
liberal vai tornando desnecessária a guerra por recursos naturais entre estados
nacionais, o sistema econômico global, pela engrenagem demonstrada, necessita
do conflito armado para manter os recursos, conquistar novos e manter a cada vez
maior massa de excluídos sob controle.
A IDEOLOGIA SUBSTITUI A GUERRA?
Como dito acima, os conflitos armados convencionais[8]
entre estados nacionais têm diminuído. Isto se explica pelo fato da expansão da
democracia liberal e a globalização da economia. O fato é que, a guerra entre
estados nacionais de democracia liberal e economia capitalista foi substituída
por um eficiente controle ideológico fundado na legitimidade de democracias
representativas liberais comprometidas pelo financiamento privado de campanha;
corrupção generalizada e desinformação gerada por uma imprensa concentrada nas
mãos de conglomerados econômicos. As decisões são aparentemente democráticas
por que tomadas por governos eleitos que governam com maioria da opinião
pública.
Luis Barrios[9]
cita dois exemplos entre vários que ilustram o que dissemos acima. O
pesquisador aborda no seu artigo a exportação de riscos ambientais para os
países economicamente mais frágeis e com democracias liberais representativas,
enquanto os vultosos lucros permanecem nos países hegemônicos (especialmente
Europa ocidental e o ocidente americano – EUA e Canadá).
O primeiro caso ocorre no Uruguai a partir de 1998.
Seguindo o que vem ocorrendo no Chile, Brasil, Paraguai e Argentina, o governo
eleito do Uruguai admite receber investimentos de empresas européias (no caso a
ENCE espanhola e a METSÄ-BOTNIA finlandesa) para reflorestamento com fins de
produção de papel. Entre os argumentos que fundamentam a propaganda, capaz de
ganhar a simpatia da opinião pública sustentando assim a tomada de decisão do
governo, estão os tratados de proteção de investimentos e o comércio do carbono
instalado sob a proteção dos “mecanismos de desenvolvimento limpo” do protocolo
de Kyoto. Estes tratados de proteção de investimento, segundo no informa Luis
Barrios, têm a força de neutralizar a mobilização social que ocorre com o
deslocamento de culturas tradicionais e expulsão de comunidades étnicas para
naquelas terras plantar eucaliptos e pinhos. O mais absurdo é o fato destas
plantações serem certificadas como bosques pelo Conselho de Manejo Florestal
(Forest Stewardship Council), gerando, portanto, autorizações para continuar
emitindo gases estufa nos países de origem dos donos das plantações. Em 2005
uma empresa Sueca (STORA-ENSO) iniciou a formação de seu parque florestal no
Uruguai com a pretensão de comprar 90.000 hectares
para plantar pinho e eucalipto e instalar uma fábrica de papel às margens de um
dos principais afluentes do Rio Uruguai.
Esta prática de exportação de risco ambiental
transferindo para os países considerados “subdesenvolvidos econômicos” (e para
os europeus subdesenvolvidos sociais, culturais e políticos) os processos mais
danosos de produção do papel não é o único exemplo:
“Os danos causados pelas explorações mineiras a céu
aberto no Peru, Chile e Argentina; a instalação de indústrias químicas que
lançam seus dejetos contaminadores em rios e terras ou os armazenam nas
próprias fábricas; a invasão de culturas transgênicas no Brasil, Paraguai e
Argentina, seguidas das correspondentes propagandas de presentes de semeadoras
de segunda geração; o assédio das reservas de água doce, em particular as do
lençol subterrâneo Guarani; a privatização de reservas naturais com o objetivo
de criar novas espécies geradoras de patentes nanotecnológicas; a exportação de
lixo tóxico de origens distintas. Enfim, uma lista interminável de decisões de
risco e de perigosos empreendimentos em curso.”[10]
Todas estas ações são tomadas hoje
por governos eleitos que se sustentam em uma opinião pública tomada pela
ideologia (crença) de que a prosperidade do mercado com os investimentos
estrangeiros impulsionarão a equidade social, proteção ambiental e segurança
coletiva.[11] A
silenciosa aceitação da opinião pública de constantes ações tomadas por governos
eleitos contra os interesses dos eleitores é tema que necessita ser pesquisado
e minuciosamente analisado. Os exemplos são muitos.
“Entre 1998 e 1999, 600 toneladas de sementes
de algodão contaminadas, uns 4.000
kg de pesticidas e quantidades indeterminadas de uma
bactéria fungicida, tudo fora de uso, foram jogadas em uma localidade próxima à
cidade de Ybicuí, distante 120
Km da capital do Paraguai. Os dejetos tóxicos provinham
dos Estados Unidos e pertenciam à empresa industrial química DELTA & PINE
LAND Co. O caso foi relatado e documentado pelo jornalista Carlos Amorim, 2003,
“As sementes da morte”. Desde novembro de 1998, o Paraguai era signatário da
Convenção de Rotterdam. Além da óbvia toxidade de todo o carregamento, algumas
das substâncias trazidas e jogadas nas proximidades de Ybicuí estavam
explicitamente na lista de circulação controlada (PIC). O tratamento
abertamente cúmplice que as autoridades paraguaias deram ao ilícito depois da
primeira morte causada pelos dejetos é revelador da falta de defesa em que se
encontram as populações do mundo subdesenvolvido quando se trata de enfrentar
ilícitos por contaminação de poderosas transnacionais que negociam, diretamente
com os governos e com particulares sem escrúpulos”.
Importante notar que o Paraguai
era, nesta ocasião, mais uma recente democracia liberal representativa com
meios de comunicação concentrados como ocorre em muitos outros exemplos.
CAPITALISMO E A PRIVATIZAÇÃO DA
GUERRA.
A
guerra hoje não é apenas uma necessidade do sistema econômico em busca de
recursos naturais e de sua manutenção. A indústria armamentista se tornou um
grande negócio que se alimenta da guerra. A engrenagem se tornou mais complexa
uma vez que a guerra não é apenas uma necessidade para possibilitar acesso a
recursos, mas mesmo que não se necessite de recursos, mesmo que estes recursos
estejam militarmente ou ideologicamente assegurados, a guerra se justifica pela
necessidade de venda de produtos para a guerra. É a guerra pela guerra.
Não
só a indústria armamentista se alimenta da guerra, mas todo um setor de
serviços privados foi criado para possibilitar a guerra. Neste momento a
engrenagem se ajusta: ações militares em busca de recursos; ações militares
para manutenção dos recursos conquistados; ações militares para reprimir os
excluídos do sistema econômico; ações militares para gastar os produtos da
indústria bélica e finalmente ações militares para empregar os serviços
privados de guerra.
Os
exemplos também são fartos e basta prestar atenção aos jornais diários
especialmente nos conflitos constantes no continente africano.
DIREITO A PAZ, JUSTIÇA E FIM DA
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL: UMA POSSIBILIDADE JURÍDICA CONSTITUCIONAL PÓS-MODERNA?
A superação da modernidade européia
parece cada vez mais visível. A uniformização do direito e do comportamento que
sustentam a globalização de um sistema econômico egoísta e excludente é a marca
desta modernidade. Foram quinhentos anos de opressão; violência e exploração
sistemática e continua da natureza. A natureza, nestes séculos, tem sido vista
como dissociada da sociedade humana, servindo para abastecer, esta sociedade,
de “recursos” necessários para alimentar o desejo incontrolável de consumo de
bens, de produtos.
Este sistema criou subjetividades,
formas de ver, viver e compreender o mundo, subjetividades estas que aprisionam
o ser humano em um sistema que se alimenta no desejo por bens de consumo. A
competição e o individualismo foram naturalizados.
Como romper com a ideologia hegemônica
na qual boa parte da população do planeta se encontra mergulhada.
Se cada um tem um papel no processo de
revolução social, aqueles que estudam a realidade social podem ajudar a
desvendar, a revelar os processos escondidos pelo discurso ideológico
hegemônico.
Um dos movimentos mais interessantes que
têm a capacidade de romper com as bases ideológicas da modernidade (que
sustenta o estado moderno do qual o capitalismo carece) é a rica experiência do
estado plurinacional na Bolívia e Equador.
A idéia de Estado Plurinacional pode
superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos
os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na constituição
nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema
econômico entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos
anteriormente o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com
a intolerância religiosa.
A partir da constitucionalização e sua
lenta democratização (em geral, ainda de bases liberais meramente
representativas) não se poderia mais admitir a construção da identidade
nacional com base em uma única religião que uniformizasse o comportamento no
plano econômico (direito de propriedade) e no plano familiar (direito de
família). Tornou-se necessário construir uma outra justificativa e um outro
fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais presentes no
Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do
Estado como legitimo.
A Constituição irá cumprir está
função. Inicialmente não democrático, o constitucionalismo irá uniformizar
(junto com o direito civil) as bases valorativas desta sociedade nacional,
criando um único direito de família e um único regime de propriedade que
sustentaria o sistema econômico. Isto ocorreu em qualquer dos tipos
constitucionais: liberal; social ou socialista.
A uniformização de valores e
comportamentos, especialmente na família e na forma de propriedade exclui
radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que, ou se
enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade
constitucionalizada (uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o
aculturamento e a perda de raízes ou então a miséria, os presídios ou os
manicômios.
A lógica do Estado nacional, agora
constitucionalizado e mesmo “democratizado”, sustenta esta uniformização. A
ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto “pacto social”
ou “contrato social”, ou qualquer outra ideia que procura identificar nas bases
destas sociedades um suposto acordo uniformizador. Nas Américas seria admitir
que as populações originárias tivessem aberto mão de sua história e cultura
para assumir o direito de família e o direito de propriedade do invasor
europeu, que continuou no poder com seus descendentes brancos a partir dos processos
de independência no século XIX.
A grande revolução do Estado
Plurinacional é o fato que este Estado plural, democrático participativo e
dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado
nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada
representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo
radicalmente excludente.
O Estado plurinacional reconhece a
democracia participativa como base da democracia representativa e garante a
existência de formas de constituição da família e da economia segundo os
valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais)
existentes.
“Sin embargo, no se toma en cuenta que los grupos étnicos
no luchan simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho
histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de
preservar las zonas de significado ecológico-cultural.”[12]
Certamente este Estado joga por terra
o projeto uniformizador do Estado moderno que sustenta a sociedade capitalista
como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da propriedade e
mais tarde da economia liberal.
Nas palavras de Ileana Almeida:
“Al funcionar el Estado como representación de una nación
única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos
políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la
existencia misma de otros pueblos y convierte al indígena en victima del
racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está
generalizada en los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas
a abandonar su identidad y pasar a formar filas de la nación ecuatoriana
aunque, por lo general, en su sectores más explotados.”[13]
A Constituição da Bolívia, na mesma
linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe sobre a questão indígena em
cerca de 80, dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos originários” (aqueles
que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter participação
ampla e efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a
aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para
parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter
propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e
os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a
equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do
país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes
eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser
revisadas pela Justiça comum.
Outro aspecto importante é o fato da
descentralização das normas eleitorais. Assim os representantes dos povos
indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas
comunidades.
A Constituição ainda prevê a criação
de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema
ordinário e pelo sistema indígena.
A nova Constituição democrática
transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em
quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados
brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma
dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e
administrar seus recursos econômicos.
O projeto constitucional avança ainda
na construção do Estado Plurinacional ao acabar com a vinculação do estado com
a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o
Brasil é desde 1891).
Outro aspecto importante é o
reconhecimento de várias formas de constituição da família.
Além de importante instrumento de
transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos
plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de
construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o
caminho para se pensar em um
Estado democrático e social de direito internacional.
Citando
novamente Ileana Almeida:
“En contra de lo que podría pensarse, el reconocimiento
de la especificidad étnica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas
que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se
robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resistencia
al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocidio, imposición política,
religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación económica”.[14]
A América Latina (melhor agora a
América Plural), que nasce renovada nestas democracias dialógicas populares, se
redescobre também indígena, democrática, economicamente igualitária e
socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise econômica e
ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no
egoísmo e na competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo,
democrático e tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e
violenta de quinhentos anos de Estado nacional.
CONCLUSÕES
Para
a compreensão da grande contribuição do Estado Plurinacional e do
constitucionalismo boliviano e equatoriano para a construção de um novo
paradigma democrático de Estado que supere os 500 anos de estado nacional
precisamos pontuar algumas questões:
a)
O
estado moderno surge a partir da afirmação de uma esfera territorial
intermediária de poder: o poder dos reis entre o poder dos impérios
(multi-étnico e descentralizado) e o poder dos senhores feudais (local e
fragmentado);
b)
Para
que o poder deste novo estado fosse reconhecido foi necessário construir uma
nacionalidade por sobre as nacionalidades pré-existentes. Assim foi inventado o
espanhol como uma identidade por sobre as identidades anteriores de castelhanos,
galegos, bascos, catalães e outros, processo que se repetiu em escalas
diferentes na França, Portugal, Reino Unido e vários outros estados nacionais
que se formaram nos últimos quinhentos anos;
c)
Este
estado nacional uniformiza valores por meio, inicialmente, da religião. A
partir daí é gradualmente construído todo um aparato burocrático que permitirá
o desenvolvimento do capitalismo: o povo nacional, a moeda nacional, os bancos
nacionais, os exércitos nacionais (fundamental para a expansão européia em busca
de recursos para o desenvolvimento de sua economia) e a polícia (fundamental
para o controle e repressão dos pobres excluídos do sistema econômico
desigual);
d)
Desde
então, este modelo uniformizador vem se reproduzindo, até mesmo nas novas
formas descentralizadas de estado como os estados federais, os estados
regionais e o estado autonômico espanhol. Nestes estados, mesmo se reconhecendo
a diversidade cultural e lingüística, a base uniformizadora do direito de
propriedade (que sustenta um sistema econômico único) e o direito de família
(que sustenta os valores deste sistema econômico) permanecem mais ou menos
intactas, mas sólidas;
e)
A
uniformização econômica fundada na uniformização do direito de família e do
direito de propriedade permanece também em novas formas jurídicas como, por
exemplo, o direito comunitário europeu;
f)
A
base ideológica moderna permanece intocável, mesmo com todas as conquistas de
direitos constitucionalizados: o estado permanece uniformizador, excludente,
fundado sobre uma economia capitalista que necessita de “recursos naturais”
para abastecer a sede de consumo alimentada pela ideologia hegemônica.
g)
Nas
Américas os estados nacionais tiveram um processo de formação diferenciado:
enquanto na Europa os mais diferentes foram excluídos fisicamente (muçulmanos e
judeus) e os menos diferentes foram uniformizados (os grupos étnicos internos),
na América os estados formados que se tornaram independentes nos séculos XVIII
e XIX, foram construídos pelos descendentes dos europeus para os homens brancos
descendentes dos europeus. Os povos originários, chamados de índios pelos
invasores europeus, foram radicalmente excluídos da ordem jurídica
constitucional nascente, assim como os imigrantes forçados da África que
tiveram suas vidas escravizadas;
h)
Assim
surgiram nas Américas, estados nacionais para 20% (este é um número simbólico
uma vez que encontramos estados que até hoje a exclusão supera este número).
Nos Estados Unidos a população carcerária[15]
já atinge 2.750.000 pessoas (dois milhões setecentos e cinqüenta mil pessoas)
sendo que destes, 80% são negros e hispânicos. Só de homens negros são 800 mil
presos e mulheres negras 75 mil presas.[16]
Este fenômeno se repete em toda a América. No Brasil só os pobres e miseráveis são
presos. A maioria dos povos originários na Bolívia, Equador e Chile foram
radicalmente excluídos e só agora com governos democráticos finalmente eleitos
(Evo Morales na Bolívia; Rafael Correa no Equador e Michelle Bachelet no Chile)
a situação começou a mudar;
i)
A
onda democrática na América Latina trouxe uma importante novidade: a previsão
de um estado plurinacional, onde cada grupo étnico poderá manter o seu próprio
direito de família e o seu próprio direito de propriedade, mantendo ainda
tribunais para resolver as questões nestas esferas;
j)
Esta
novidade pode finalmente representar uma ruptura com 500 anos de hegemonia do
paradigma do estado nacional que representa a hegemonia européia;
k)
Este
novo constitucionalismo plurinacional pode fundamentar uma nova ordem
internacional democrática e logo igualitária exigindo a coragem de se romper
com o universalismo europeu[17]
que gerou os direitos humanos “universais” europeus e uma ordem desigual
cultural, econômica e social favorável aos estados do norte (Europa ocidental,
EUA e Canadá) reproduzidos nos textos preconceituosos de suposta superioridade
européia presentes no Tratado de Versalhes e com fortes resquícios na Carta das
Nações Unidas (como, por exemplo, no sistema de tutela)
Um novo estado democrático
plurinacional é possível assim como uma nova ordem mundial e a construção de um
direito internacional (talvez mundial) democrático deve partir da superação das
pretensões hegemônicas; das falsas declarações ou suposições disfarçadas de
superioridade cultural. Uma nova ordem democrática radical pode fundamentar a
construção de uma nova ordem mundial democrática, sustentável e pacífica o que
exige a construção de espaços permanentes de diálogo em condições reais de
igualdade de manifestação, de igualdade de fala na construção de consensos.
Este novo constitucionalismo democrático latino-americano deve fundamentar uma
nova ordem mundial democrática o que exige o reconhecimento dos novos atores
das relações mundiais; de novos sujeitos de um direito internacional que,
talvez, a partir daí, seja finalmente democrático e deixe de ser meramente
internacional, mas efetivamente mundial.
[1] - Doutor
em Direito Constitucional.
Professor da UFMG e PUC-MG, nos cursos de graduação e
pós-graduação.
[2]
Quando nos referimos a Europa hegemônica hoje nos referimos ao ocidente ou a
OTAN: Europa ocidental, Estados Unidos e Canadá.
[3]
WALERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, São Paulo : Editora Boitempo, 2008.
[4]
SOUZA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo – para uma nova cultura
política, São Paulo: Editora Cortez, 2006, pp. 181-190.
[5] Tomando
como exemplo a Espanha os mais diferentes expulsos são os muçulmanos e judeus e
os menos diferentes uniformizados são os diversos grupos étnicos cristãos
ibéricos.
[6]
São vários os exemplos ainda hoje: castelhanos sobre bascos, catalães, galegos
e andaluzes na Espanha; ingleses sobre escoceses, galeses e irlandeses no Reino
Unido seguindo-se esta lógica em vários outros estados (Itália, França, etc).
Alguns estados onde a hegemonia é menos clara as tensões também existem. A Bélgica,
tenta solucionar, as hegemonias históricas de franceses e flamengos, com um
federalismo assimétrico de grande complexidade.
[7]
Obviamente não ignoramos as potências medianas que também participaram da
divisão global dos recursos com força diferenciada em momentos diferentes como
Portugal; Espanha; Holanda; Bélgica entre outros.
[8]
Como dito, isto não significa dizer que a violência e os conflitos armados não
convencionais tenham diminuído.
[9]
BARRIOS, Luis. “O difícil diálogo entre estratificação social e a sociedade do
risco” in VARELLA, Marcelo Dias
(organizador) Direito, Sociedade e Riscos – a sociedade contemporânea vista a
partir da idéia de risco, Brasília: Uniceub; Unitar, 2006.
[10]
BARRIOS, Luis. “O difícil diálogo entre estratificação social e a sociedade do
risco” in VARELLA, Marcelo Dias
(organizador) Direito, Sociedade e Riscos”, ob. Cit. Paginas 235-236.
[11]
Trabalhei em diversos textos de minha autoria a questão da ideologia e do
encobrimento do real.
[12] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor
histórico y libertad política para los indígenas ecuatorianos. Quito : Editora
Abya Yala, ,2008, p. 28.
[13] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor
histórico y libertad política para los indígenas ecuatorianos; ob.cit. p. 28.
[14] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor
histórico y libertad política para los indígenas ecuatorianos; p. 29.
[15] -
Em contato com o sistema penal, aí incluídos a probation e a parole, são
mais de 4 milhões de pessoas, de acordo com Virgílio de Mattos.
[16]
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.
[17]
WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu – a retórica do poder. São
Paulo: Editora Boitempo, 2007.
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