Pluralismo epistemológico e modernidade
José Luiz Quadros de Magalhães
A modernidade parece estar
chegando ao final. O que estou chamando de modernidade começa (como referência
simbólica) em 1492. Neste ano dois fatos marcam o inicio do processo de
formação do estado moderno e com este, o direito moderno uniformizado e
uniformizador; o exército nacional; as moedas nacionais; os bancos nacionais; o
capitalismo; o povo nacional; a polícia; a burocracia estatal; o direito
internacional; as ideias de democracia representativa; a separação de poderes;
o liberalismo; o fascismo e o nazismo; o socialismo; o stalinismo; as
constituições nacionais; os direitos humanos entre outras ideias e instituições
que marcam a modernidade. Em tudo isto há uma marca comum que marca a
modernidade: a ideia de uniformização; homogeneização; normalização (que gera
hegemonias) e a negação sistemática da diversidade, o que acontece, inclusive
(muitas vezes) com a percepção de direitos humanos e do direito internacional
(neste ultimo caso muito claro: o direito internacional não é internacional mas
sim europeu). É desta modernidade fundada sobre a ideia de normalização e
uniformização que estou falando quando afirmo que parece estar chegando ao seu
final. As transformações recentes no direito constitucional com o estado
plurinacional na Bolivia; e a repercussão destes movimentos no direito
internacional anuncia um direito que pode romper com 500 anos de tradição
uniformizadora e hegemônica comandada por uma visão estritamente e
estreitamente europeia. O mundo europeu (moderno) está chegando ao final
(parece) e a partir deste fato precisamos pensar alternativas.
Colocamos aqui uma placa de
alerta: durante algum tempo prevaleceu a ideologia (no sentido negativo do
termo) do fim da história. Claro que esta afirmativa é falsa, grosseiramente
falsa. Não há fim da história pois a história, a transformação permanente de
tudo o que somos e de tudo o que nos cerca é, talvez, a condição única comum de
toda vida e de tudo que acontece no universo. Somos seres históricos na medida
em que podemos construir nossa própria história individual e coletiva. Somos
história na medida em que vivemos em um universo em processo permanente de
transformação, em que mudamos todo tempo assim como tudo o que existe, e nos
diferenciamos do resto pelo fato (até onde é possível saber) que podemos
racionalmente, com intenção determinada, construir as sociedades em que vivemos
e estabelecer relação de comunicação com outras formas de compreensão do mundo
e da vida, e com estas aprender e transformar. Assim somos seres que sofremos o
impacto da transformação permanente do universo; de nossa biologia e de nossa
psiquê. Mesmo que não queiramos, mudamos. Mudamos fisicamente; biologicamente;
psicologicamente; intelectualmente. A péssima noticia para os conservadores é o
fato de que, mesmo que as pessoas não queiram mudar, elas mudam, todo o tempo.
Basta acordar e experimentar que a mudança ocorre, mesmo que não queiramos. Mas
temos algo a mais: não só, apenas, sofremos mudanças que não controlamos ou
desejamos como também podemos mudar algo segundo nossa intenção e desejo. Não
há aqui nenhuma pretensão inocente ou declaração romântica de que podemos tudo.
Nossa possibilidade de liberdade reside na nossa capacidade de compreender os
diversos limites, das mais variadas ordens, que se colocam entre nós e a
construção da nossa vontade e de nosso agir. Somos condicionados por nossa
história; pelo inconsciente; pela história das sociedades; pela genética e toda
a biologia; pela química; pela ideologia (pela nossa e pela que nos é imposta),
entre outras coisas, podemos, apesar de tudo isto e com tudo isto, encontrar
nossa liberdade. Nossa liberdade será possível quando entendermos os processos
diversos de condicionamento de nosso pensar e agir. Esta é nossa maravilhosa
possibilidade de liberdade. A única liberdade possível, a liberdade consciente,
inclusive, do inconsciente.
O século XXI começou com uma
importante novidade: o estado plurinacional enquanto construção social que desafia
a teoria do direito e a teoria constitucional moderna. Embora possamos
encontrar traços importantes de transformação do constitucionalismo moderno já
presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e da Venezuela de 1999 são as
constituições do Equador e da Bolívia que efetivamente apontam para uma mudança
radical que pode representar, inclusive, uma ruptura paradigmática não só com o
constitucionalismo moderno mas com a própria modernidade.
O processo de transformação em
curso, especialmente na Bolívia apresenta um potencial transformador radical e
representa um desafio para os estudiosos do tema.
É fundamental que a Universidade,
que as pessoas que se dedicam a estudar e compreender o mundo em que vivemos se
voltem à tarefa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os
últimos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo muitas de
suas criações. É obvio que uma ruptura, uma mudança paradigmática no campo da
história e das ciências sociais nunca será total. É claro que o presente está
impregnado de passado, assim como o futuro estará impregnado do presente.
Não estamos negando as
contribuições da modernidade européia e suas revelações de encobrimentos
passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de
acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história (não
linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos, revela
e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações. Muitos dos
encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão agora se revelando.
O que pretendemos neste artigo é
buscar entender um pouco mais as rupturas possíveis apontadas pela idéia de
pluralismo epistemológico a partir da fascinante experiência boliviana de
estado plurinacional.
São vários os eixos que devemos
estudar e discutir para entendermos a grande novidade que representa para o
direito e a teoria do estado a Constituição boliviana e equatoriana e a idéia
de um estado plurinacional. Em outros artigos e livros discutimos outros aspectos
do direito à diversidade e o estado plurinacional. Acreditamos, ser importante
compreender o processo em curso na Bolívia a partir da Constituição
Plurinacional e para isto precisamos entre outros temas, compreender o pluralismo epistemológico. Alguns livros devem
ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser a
sustentação deste novo constitucionalismo e de um possível novo direito
internacional.[4]
Pluralismo
Epistemológico
Já
faz alguns anos que sempre pergunto em sala de aula e palestras em diversos
lugares sobre os filósofos mais conhecidos pelos presentes. Peço que os
assistentes digam o nome do primeiro(a) filosofo(a) que vier a sua cabeça. A
resposta é muito semelhante, em qualquer faculdade, cidade, estado ou país:
invariavelmente aparecem majoritariamente alemães e gregos (em geral, entre os
dez primeiros nomes citados 8 são de alemães e gregos) e depois um francês,
inglês ou italiano. Raramente aparece um nome de uma mulher, que quando aparece
são as mesmas Simone de Beauvoir e Hannah Arendt. Após o “teste” a habitual
provocação: “quer dizer então que só os homens alemães e gregos pensam?”
Ora,
esta brincadeira é apenas para introduzir uma discussão: como a hegemonia
militar, econômica e cultural europeia construída na modernidade foi capaz de
encobrir outras culturas, outras filosofias, outras formas de pensar, sentir e
compreender o mundo.
É
preciso compreender alguns dos vários mecanismos postos em marcha para
sustentar a hegemonia ideológica europeia (ocidental). Em primeiro lugar, a
defesa de uma história linear foi fundamental para construir a justificativa de
uma suposta missão civilizatória. A ideia de que os povos e suas culturas se
encontram em estágios distintos de evolução resultou na compreensão de que a
cultura mais desenvolvida (obviamente a que tem mais poder militar e econômico
para dizê-lo), ao intervir em outras culturas está levando desenvolvimento e
avanços civilizacionais. Esta missão civilizatória será a justificativa,
especialmente para os que cometem os assassinatos, invasões e espoliações, mas
também, de certa forma, para os espoliados aceitarem sua condição. Desde então
o discurso vai se tornando mais sofisticado, mas desde o discurso de
evangelização até o discurso da intervenção humanitária, para levar direitos
humanos e democracia, estes discursos encobrem as reais motivações que
movimentam os civilizadores.
Estes
quinhentos anos marcam encobrimentos. Como mencionamos primeiro capítulo, o
estado e o direito moderno tem uma base que é fundamental para a sua
compreensão: para que o poder centralizado seja reconhecido este estado, e este
direito moderno, precisa uniformizar, padronizar, homogeneizar. O estado e o
direito moderno se reproduzem, portanto, em sistemas hegemônicos, em qualquer
instância. Assim, nos estados modernos vemos a hegemonia de um grupo étnico (e
ou também econômico e político) sobre os demais, o que se reproduz no direito
comunitário (a União Europeia alemã) e no direito internacional (europeu).
Por todo o mundo, povos e suas
culturas foram exterminados; idiomas desapareceram; formas de produzir e de
viver, formas de pensar e sentir foram ocultadas ou para sempre desapareceram.
Uma
subjetividade hegemônica (a partir de parte da Europa) será gradualmente e
violentamente universalizada. Esta subjetiva (forma de ver e interpretar o
mundo) será levada ao todos (ou boa parte) do mundo. A exportação de livros,
teorias, cultura será feita a partir de um imenso aparato construído a partir
da hegemonia econômica, sustenta na inicial hegemonia militar. Povos serão
privados de sua música, sua arte, sua forma de comer e pensar. As universidades
ocidentais (Europa ocidental e EUA) passarão a ser o destino de alunos de todo
o mundo. Ali será ensinada como universal a filosofia ocidental (leia-se
ocidente como uma construção das culturas hegemônicas de alguns estados
hegemônicos da Europa). Nestes centros serão, também, ensinados a economia (a
forma de produção de parte dos estados da Europa ocidental) como sendo a única
forma econômica possível. A partir destes centros uma gigantesca indústria
cultural (na segunda metade do século XX especialmente os EUA) ditará
comportamentos, modas, gostos e criará padrões comportamentais que sustentaram
uma sociedade de consumo global.
A
ciência será apenas a ciência (ocidental), e daí só terá valor a medicina e
outras práticas locais, que agora com o selo da “ciência” (a nova religião)
passarão a ser postos como universais.
E
tudo que foi encoberto? A mesma tecnologia, conquista da ciência ocidental,
começará a criar espaços de comunicação. O que estava oculto, o que não tinha
espaço para se manifestar começa a aparecer. A resistência de inúmeros grupos
étnicos por todo o mundo começa a ser visto. Estes grupos começam a se comunicar,
o que estava oculto passa a ter visibilidade. Assim começamos a perceber,
lentamente, que a suposta linearidade histórica é sim uma poderosa ideologia
para sustentar uma supremacia construída pela força militar. A linearidade
passa a ser substituída pela complementaridade. As culturas, as diversas
filosofias, ciências, técnicas, epistemologias, teologias entre outros espaços
de compreensão e sentimento podem ser vistas como complementares. Para isto é
fundamental superar qualquer tentativa de hegemonia ou qualquer pretensão de
submissão ou encobrimento. A hierarquia cultural deve ser superada.
Se
nos percebermos como seres autopoiéticos (autoreferenciais e autoreprodutivos)
descobriremos que somos o limite de nossa própria compreensão e percepção do
mundo. Assim podemos dizer que, entre nós, e o que está fora de nós (que
podemos chamar de realidade) está sempre, inevitavelmente nós mesmos.
Portanto,
um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto
vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres
vivos, autoreferenciais e autoreprodutivos, e esta condição se manifesta também
nos sistemas sociais.
Dois
cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela[1],
trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na
biologia, resgatam a ideia de autoreferência que se aplica para toda a ciência.[2]
Estudando
a aparelho ótico de seres vivos[3],
os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O
resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça
para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na
direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a
tradução do mundo em volta do sapo.
A
partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente
obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências ocidentais durante
séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do
observador na construção do resultado.
O
fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que
está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada
e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim,
para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as
imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber
cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por
vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou
cores.
Outras
lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além
do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações
químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando
estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas
perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo.
De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os
antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre
ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos
perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos
que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada
por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição
influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez
que cada observador é um mundo, um sistema autoreferencial formado por
experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes
na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção
de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim
podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o
mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e
tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos
do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar
valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas
lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que,
ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona
sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade,
autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se
livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O
sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo
que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que
dificilmente são universalizáveis.
Somos
seres autopoiéticos (autoreferenciais e autoreprodutivos) e não há como fugir
deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que
nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para
traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do
mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A
linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do
mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto
mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que
carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do
mundo nos será revelado.
Assim
não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas,
pois é impossível separar o observador do observado[4].
Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as
intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da
impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a
relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da
democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
A
partir da compreensão da autopoiesis podemos começar a compreender o enorme
poder que decorre da uniformização das subjetividades, da uniformização do
mundo e de sua compreensão e do proposital encobrimento de outras
epistemologias, outras filosofias, outras ciências, outras formas de viver e
sentir o mundo.
Todo
um aparato é construído pelo estado moderno e pelas instituições modernas (o
exército; o povo nacional; a policia; a escola; a mídia) para construir as
compreensões do mundo que fazem parte do senso comum, através do qual as
pessoas interpretam o mundo. Construir as pré-compreensões, construir os
significados iniciais das palavras básicas é a tarefa moderna uniformizadora. Quem
controla os processos de construção do senso comum detém muito poder sobre o
comportamento das pessoas. Resta pensar: onde são construídos os significados
originários das palavras e de tudo mais? A resposta pode ser surpreendente e
ajudará a explicar a gravidade dos ocultamentos sistematicamente realizados nos
últimos quinhentos anos.
Outro
pressuposto que sustenta e procura justificar a hegemonia europeia é a
naturalização das ciências sociais (especialmente a economia e o direito) e a
despolitização do mundo.
A
despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder que se
tornou hegemônico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta
pela hegemonia ideológico-política é por conseqüência a luta pela apropriação
dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que
transcendendo as clivagens políticas.”[5]
Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a
expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo
políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois
coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza
humana. Se os direitos humanos não são históricos e sim direitos naturais,
devemos nos perguntar quem é capaz de dizer ou quem pode dizer o que é o
natural humano em termos de direitos?
Ao
contrário, se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos
reconhecendo que nós somos autores da história e logo que o conteúdo destes
direitos deve ser construído nos diversos e plurais espaços de convivência
social, pelo diálogo aberto, do qual, todos, possam fazer parte sem hegemonias.
Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais retiramos os direitos
humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro espaço
sacralizado, intocável. Neste outro espaço encontraremos o significado
sacralizado do que é natural. Quem é este que pode dizer o que é natural? Deus?
Os sábios? Os filósofos? A natureza? Não. A resposta, por tudo o que foi dito
até aqui é muito simples: aqueles que têm poder para dizê-lo.
Outra
justificativa recorrente construída pela subjetividade hegemônica para
justificar sua própria hegemonia é a exaltação da concorrência e da vitória do
melhor como razão da supremacia de uma cultura sobre as demais. Todo aparato
cultural, de entretenimento e todas as justificativas de enormes desigualdades,
sustenta-se na ideia de recompensa pelo maior esforço. Não se conta,
entretanto, quem criou o jogo e estabeleceu suas regras, uma vez que regras
distintas levariam a resultados distinto, assim como jogos distintos levariam a
vencedores distintos. Isto, simplesmente não é posto em discussão. O jogo é
naturalizado. Não defendo, é claro, que devemos jogar e vencer. A tese central
deste livro é justamente o contrário. Se jogarmos e vencermos, perdemos muito
pois eliminamos a diversidade. Acabamos com a possibilidade de aprendermos com
a enorme diversidade que é ocultada sob o titulo de “perdedores”. Não pode
haver cultura vencedora, nem sistema econômico (economia gera cultura)
vencedor, e é claro não pode haver uma filosofia ou uma epistemologia
vencedora. Assim todos perdemos, e muito, pois perdemos a diversidade, a
possibilidade de ver mais, compreender mais, a partir de um sistema que
possibilite a percepção de complementaridade presente na diversidade e
sistematicamente negada pela modernidade.
Assim,
uma cultura hegemônica (vencedora) nos faz desaprender (ou nunca nos ensinou) a
conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea estas
características são ainda mais valorizadas. Somos levados a sempre escolher “o
melhor”. Nos programas de televisão não se escuta simplesmente uma musica. Este
prazer de ouvir uma musica vem acompanhada quase sempre com a escolha do melhor
cantor, a melhor musica, o melhor calouro. A competição é alimentada em todo
momento, em todas as atividades. Na escola é escolhido o melhor aluno, a melhor
composição, a melhor monografia, a melhor nota em cada matéria. Esta competição
permanente nos leva inconscientemente a reprodução da lógica do melhor em quase
tudo: quem é o nosso melhor amigo? Qual a melhor pizza da cidade? Qual o melhor
churrasco? E o melhor tempero? A melhor cerveja, o melhor escritor, o melhor
livro, o melhor argumento, o melhor candidato, o melhor professor, o melhor
samba enredo e a melhor escola de samba, o melhor...
Não
é necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa
impossibilidade momentânea (que a cultura de massa vai tornando possível cada
vez mais) de construir um consenso sobre o que é melhor, que ainda nos salva do
totalitarismo. O problema será o dia quando todos concordarem sobre o que é o
melhor (estávamos quase lá quando veio a crise de 2008).
O
texto deste livro, se publicado em uma revista “cientifica” fiscalizada,
controlada, padronizada, limitada pela qualificação oficial, onde poucos dizem
para muitos o que é bom e correto, o que é cientifico, tem que se conformar aos
padrões do que é melhor. Tem que ter uma introdução, um desenvolvimento, e uma
conclusão. Em muitas publicações exige-se um resumo, um abstract, palavras
chave, bibliografia, seguir as regras da ABNT, ser escrito em “Times New
Roman”, alguns centímetros acima, outros abaixo, alguns do lado outros do outro
lado, citar outros autores e repetir o que eles disseram, etc, etc, etc... E se
não citar um monte de autores considerados os melhores pensadores, aí acabou
tudo. Não vale nada.
Já
que é para citar, o filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le
Monde des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos
parar de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito?
Por
este exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o
aprisionamento do pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário,
diante do qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras criadas para
padronizar crianças e adolescentes ensinando-as a pensarem com “lógica”. O
império da forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é uma forma de como a
escolha do melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos
acesso ao novo, ao livre, ao diferente.
A
história do pensamento científico tem nos mostrado nos últimos séculos que uma
ideia, uma teoria que se tornará majoritária nasce minoritária e quando se
torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de ser
transformada. Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton,
Marx, Freud e muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a
unanimidade com certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda
de nada. As novas teorias, as novas ideias filosóficas, políticas, econômicas
têm que envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já
estão no momento de renovação e transformação.
Uma
sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a
pluralidade pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos
dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter
que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao
contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da ideia de escolha do melhor
corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.
Voltemos
à ideia do que é melhor? Quando uma idéia política se torna hegemônica como o
liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta ideia
vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver
milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os
melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor.
Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas
ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades complexas
contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de intenções?
A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O problema reside
no fato de que as condições de percepção do mundo, das ideias, das pessoas, são
variadas, diversas, são mundos de percepção distintos reforçados pelas grandes
metrópoles, pela sociedade cosmopolita dos grandes centros urbanos. A
massificação, a busca da homogeneidade como forma de construção de consensos
tem repercussões perigosamente totalitárias como a hegemonia irrefletida,
fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal contemporânea.
Slavoj
Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o
livro dos sonhos o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias
políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia
neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção
do real com conseqüências poderosas.
Freud
fez uma monumental descoberta: o inconsciente. Como médico, Freud percebeu que
diversas patologias apresentadas por vários pacientes não tinham uma motivação
física. Assim, alguns pacientes não andavam ou não enxergavam, não por um
problema física mas por outra motivação encoberta, localizada no inconsciente
até então inacessível. Estas patologias eram então causadas por traumas que
foram recalcados (reprimidos), que foram escondidos. O importante nesta
descoberta reside no fato de que, estas experiências traumáticas recalcadas
(reprimidas) foram escondidas não se sabe onde, e o pior, as pessoas que
recalcam (reprimem) não sabem sequer que recalcaram. Em outras palavras, a
pessoa que escondeu de si mesma um trauma, não só não sabe onde escondeu como
sabe mesmo que escondeu. A partir daí o genial Freud vais desenvolver os
processos que podem permitir o acesso ao inconsciente, e desta forma trazer a
tona os recalques a combatê-los. Ora esta teoria tem tudo a ver com o que
estamos discutindo neste livro. Encobrimentos, recalques, hegemonias
sustentadas em falsas teorias e filosofias universalizadas.
Uma
das formas desenvolvidas por Freud para acessar o inconsciente foi a
interpretação dos sonhos. Freud percebe que nos sonhos existem pensamentos
latentes (recorrentes) que podem nos dar a pista para acessarmos o que foi
recalcado (reprimido). Uma vez descoberto o que foi ocultado (reprimido;
recalcado), podemos combatê-lo. Em outras palavras, nos construímos uma estória
na qual estão presentes os nossos pensamentos latentes que se escondem naquele
desenrolar de fatos criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu
desenvolvimento. Para encontrar estes pensamentos latentes que podem revelar o
que foi recalcado (encoberto) é
necessário encontrá-lo escondido nas entrelinhas desta estória.
Trazendo
isto para a política, podemos entender, por exemplo, o processo de construção
da ideologia nazista e entender como esta ideologia do ódio se tornou
hegemônica durante algum tempo na história de alguns lugares. Para isto, vamos
inverter o processo acima descrito na ordem de construção histórica, uma vez
que, o processo de análise visa descobrir o encoberto e a partir daí combatê-lo
e superá-lo, ou seja, é um processo de libertação. O que vamos explicar a
seguir e o processo inverso, ou seja, como, sabendo dos mecanismos de
encobrimento e recalque é possível manipular uma parcela expressiva da
sociedade, levando as pessoas a agirem de determinada maneira que não fariam se
pudessem ver a realidade encoberta. A
sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação, o
Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem
operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos (e os traumas
recalcados) daquela sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas
seguirem suas idéias? Criando uma estória onde os desejos e medos (e os traumas
recalcados daquela sociedade) de milhões de alemães estejam presentes. Esta
estória terá então o condão de levar as pessoas, na busca da realização de seus
desejos e superação de seus medos (e na superação dos seus recalques – que a
está matando), na direção dos interesses de quem criou a estória. Nesta estória
o estrangeiro, o judeu é responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão
quanto o empresário e o inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são
as potências estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória
construída, mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão
dos estrangeiros e especialmente os judeus. A estória contada repetidas vezes
legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e
satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite
nisto. Enquanto milhões se mobilizam em
torno desta estória, aqueles que detém o poder realizam os seus desejos e se
protegem dos seus medos. Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a
construção da estória hoje hegemônica na imprensa conservadora, de que podemos
resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais polícia, mais
direito penal, com o encarceramento em massa, criando personagens que fogem da
noção de humanidade como o bandido, o monstro violento, o menor infrator e
outras nomeações simplificadoras, toda uma política estatal é justificada e
defendida pela maioria, que é incapaz de perceber que está agindo contra seus
próprios interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a explicar porque
milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na
história da humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem
desejos e medos (e contemplam os recalques) de uma maioria, direcionando estes
para outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta
minoria.
Este
jogo de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a
percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.
Nas
palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as idéias dominantes
não são as idéias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve
incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular
‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.”
(Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez,
2004, page 25)
Zizek
observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de
comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração
deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação
das relações de dominação e de exploração social. Logo a hegemonia ideológica
não se constitui no caso onde um componente particular ocupa o vácuo de um
universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta
entre ao menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos
secretos da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças
de dominação.
Zizek
menciona como exemplo o cinema demonstrando como este pode despertar um desejo
e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não
só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas
também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma
estória, dar um sentido que atende aos interesses da classe dominante aos
desejos inconscientes das pessoas.
Retomando
Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho
e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É fundamental diferenciar a
estória do sonho, o seu texto explícito, dos pensamentos latentes manifestados
nesta estória.
De
uma maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento
latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na
solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da
ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado
pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as
relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicado ao
populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90
até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...
Estas
reflexões nos revelam processos e estratégias de encobrimento e dominação que
nos ajudam a entender a era europeia e a unicidade filosófica e epistemológica
de rebaixa e esconde o considerado diferente como já dito no primeiro capitulo.
Neste
sentido a diversidade epistemológica é uma revolução que representa a superação
da modernidade em suas bases uniformizadoras. É justamente neste sentido que
pensamos a diversidade epistemológica como fundamento de um direito
internacional que não seja mais europeu mas sim plural. Um direito
internacional e instituições internacionais que possam ir além da visão
europeia uniformizadora dos estados nacionais que sempre (hoje quase sempre)
encobrem diversidades de povos e culturas reveladoras e um mundo mais amplo. O
direito internacional para efetivamente refletir a complexidade do planeta e
responder a alguns dos seus desafios não pode mais se fundamentar em uma matriz
jurídica essencialmente europeia. O direito internacional, para ser
internacional tem que ser um direito plural ou em outras palavras, não pode
haver um direito internacional para diversos direitos (nos seus fundamentos
teóricos e filosóficos) que possam formar o sistema internacional efetivamente
plural e comum. A construção deste direito, desta forma, aponta para uma
efetivamente consensual e logo plural, onde a construção dos consensos sejam
sempre provisórias, onde a discussão de tudo nunca seja interrompida por nenhuma
maioria (ou minoria) hegemônica. Este será um direito de natureza comum e
plural, pois não será majoritário ou hegemônico, ou que de alguma forma parta
de qualquer superioridade, seja histórica, epistemológica, filosófica,
cultural, militar ou econômica.
O
pragmatismo nunca mudou o mundo. Nenhuma revolução, nenhuma grande
transformação histórica fundou-se em qualquer senso prático. O pragmatismo
mantém o mundo como está até não suportarmos mais.
Para
finalizar citamos e indicamos a leitura do livro Pluralismo epistemológico.[6]
“El mundo es un pluriverso político,
cultural y cognitivo. La vida se organiza y experimenta de varios modos. Se
produce conocimiento a través de una diversidad de estrategias, de procesos de
imaginación, que permiten comprender las diversas dimensiones de la naturaleza
y a nosotros como parte de ella. No sólo existe una pluralidad de formas de
conocimiento que corresponde a la diversidad de culturas sino que también al
interior de cada cultura se desarrolla una pluralidad de formas de pensamiento.
En este sentido que las pretensiones de verdad que se esgrimen en cualquier
cultura acaban siendo una forma de desconocimiento de la diversidad
constitutiva de su forma de vida, además se convierten en un acto represivo que
desconoce el despliegue de una pluralidad de formas de pensar en los más
diversos ámbitos, desde el estudio de los procesos de la naturaleza en sentido
amplio hasta los procesos sociales y políticos.
La modernidad ha contenido en su
historia las pretensiones de verdad universal a través de religiones
monoteístas así como de la estructura de legitimación y validación de las
formas de conocimiento que se han desarrollado bajo la noción de ciencia, pero
también ha contenido a la vez una proliferación de estrategias teóricas para
sostener esa pretensión de universalidad así como otras que, de facto, han
mostrado que no hay un único modo de pensar y conocer. La misma historia de la
ciencia se encarga de mostrar la temporalidad y la falibilidad de las teorías
aunque no necesariamente su irrelevancia. La pluralidad de formas de
pensamiento responde a la temporalidad de las formas de vida social pero
también al hecho de que el conocimiento por lo general es producto de la
imaginación, como ejercicio de libertad en procesos de trabajo y producción
intelectual.”
Conclusão
Já
trabalhamos em outros livros e artigos aspectos fundamentais para compreender a
modernidade e uma possível superação das suas bases essencialmente homegeneizadoras.
Um tema central já trabalhado é o confronto entre uniformização “versus” a diversidade. O Estado
moderno é uniformizador, normalizador. Desta uniformização (homogeneização)
depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma
identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para
que os diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados
(que começam a ser construídos no século XVI) reconheçam o único poder central
do Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as
identidades pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo
do direito construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade
uniformizadora decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que
podem ser representados com clareza na expulsão dos mais diferentes (por
exemplo, os mouros e judeus da península ibérica) simbolizada pela queda de
Granada em 1492 e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma
nova identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um
projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro
inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da
uniformização de valores por meio da religião obrigatória que se reflete no direito
moderno com a uniformização do direito de família e do direito de propriedade
que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como base da economia
moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco nacional, um exército
nacional e uma polícia nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito
moderno segue este padrão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no
direito internacional (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por
exemplo em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta da
Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança).
Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito à diferença e o direito à
diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda maior em se
admitir o direito à diversidade como direito coletivo. O constitucionalismo
plurinacional rompe com isto. A sua proposta não é hegemônica, mas ao
contrário, defende e constrói espaços de diálogos não hegemônicos para a
construção de consensos. Como resultado do diálogo não há um argumento
vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a construção de um novo argumento.
Não há uniformização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da
compreensão de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de
formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um pluralismo
epistemológico[3]. A enorme dificuldade do direito moderno em reconhecer a
diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalismo plurinacional:
este constitucionalismo se constrói sobre a diversidade radical, que é seu
fundamento. Por isto tudo, a sua enorme importância de um direito internacional
plural e não mais meramente hegemônico e europeu.
Um segundo eixo importante é o estudo da relação Constituição e democracia, e
como a democracia consensual (essencial para viabilizar qualquer idéia de
democracia no direito internacional), pode superar impasses históricos da
democracia representativa majoritária. O estudo deste aspecto do
constitucionalismo moderno é muito importante para entender uma das
contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera
a modernidade européia). O constitucionalismo moderno não nasceu democrático e
sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente
do movimento operário no decorrer do século XIX.[1] O liberalismo se mostrou
inicialmente incompatível com a democracia majoritária e mesmo após o
“casamento” entre constituição e democracia representativa majoritária a
resistência do liberalismo sempre foi muito grande aos mecanismos
efetivamente democráticos includentes.[2] De certa forma assistimos isto até
hoje quando os imperativos econômicos liberais impostos pela União Europeia
(o banco central europeu) e organizações internacionais como o Fundo Monetário
Internacional ignoram ou até mesmo combatem mecanismos democráticos
representativos que interfiram em pseudo verdades econômicas. O “novo
constitucionalismo” que se constrói na América do Sul trás consigo o conceito
de democracia consensual não hegemônica, para o qual, as construções teóricas
modernas dos direitos fundamentais, sobre a necessidade de mecanismos contramajoritários
e da existência de vitórias temporárias de argumentos debatidos, podem não ser aplicáveis
(veremos isto mais adiante). Não falaremos mais de argumento vitorioso ou de
melhor argumento, o diálogo não será interrompido pela votação e a conquista da
maioria, e, logo, não serão necessários mecanismos contramajoritários onde a
regra será o permanente dialogo não hegemônico com fins de construir consensos
sempre temporários. Na democracia majoritária representativa moderna a votação
interrompe cada vez mais cedo o debate (não há muito tempo para o diálogo) de
forma que em muitas circunstâncias só restou o voto sem debate. É necessário
decidir, daí a necessidade do voto. Como a decisão deve ser tomada cada vez
mais rapidamente, em muitos casos só restou o voto. É a “democracia
majoritária” ou a construção de maiorias contra a própria democracia.
O terceiro eixo foi o tratado neste artigo: o
pluralismo epistemológico. como dito anteriormente, alguns livros devem ser
lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser a
sustentação deste novo constitucionalismo e da possibilidade de construção de
um novo direito internacional.[4]
No quarto eixo de discussão
discutiremos, em outro trabalho, a possibilidade de superação de um sistema
monojurídico ou bijurídico (Canada?) por sistemas plurijuridicos que podem ser
caracterizados especificamente pela existência de vários direitos de família e
de propriedade e da existência de tribunais (judiciários locais) capazes de
solucionar estes conflitos além da constituição de tribunais (pluriétnicos e ou
plurirepresentativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de
construção de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções
consensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias de
argumentos de uns sobre outros. Assim, um
judiciário que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma
justiça de múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido,
apontando o argumento vencedor e com isto interrompendo o conflito sem
solucioná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante e revolucionária
para o direito internacional. Acreditamos que os tribunais internacionais não
são plurais. Os juízes pensam e julgam a partir de uma perspectiva jurídica
europeia. Assim, pouco importa a nacionalidade do julgador se o que ele pensa,
se o direito que ele reproduz (sua teoria e prática) é ocidental (europeia e
norte-americana). Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a
construção de consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um
argumento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso, uma vez que
o conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece latente e
certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão
rápida, pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados,
voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser
conquistada no Judiciário: no lugar de um argumento vitorioso, de um lado
vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos
construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada.
Outros eixos de discussão
deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos acima enumerados: a unidade
latino-americana (ou indo-afro-latino americana) não pode passar pelos
mecanismos uniformizadores do direito constitucional e internacional modernos; a
superação do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução
dialógica não hegemônica do direito “plurinacional”; a necessidade de busca de
um universalismo possível como um desafio teórico filosófico final (provisório)
o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e psicanalista Alain Badiou
em um texto que ainda será escrito.[5]
BIBLIOGRAFIA:
1-
ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 –
2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
2-
LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita
Garibaldi, São Paulo, 2008.
3-
OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia,
2009.
4-
SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales,
Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009;
5-
LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La
Paz, Bolivia, 2010;
6-
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del
mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
7-
BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain.
Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.
8-
CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad
Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
9-
SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000.
10-
DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
11-
BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel,
Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316
[4] SANTOS, Boaventura de
Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores,
Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del
diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento
del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz,
Bolivia, 1994.
[1] MATURANA, Humberto e VARELA,
Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima
edición, Santiago do Chile, 1994.
[2] No livro acima mencionado os
pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros tendemos a vivir un mundo de
certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones
prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece
cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana,
nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam
escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da
certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede
ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la
tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5
[3]
Nas páginas 8 e 9 do livro “El
arbol do conoscimiente”os autores propõem aos leitores experiências visuais de
nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que
não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão
das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma
mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor,
mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece
ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante
para tudo que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es
inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e
VARELA, Francisco, ob.cit.p.8
[4]
Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida
cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2001.
[5] ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur
de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas
ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já
foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As
portas da revolução são duas obras importantes.
[6]
SOUZA SANTOS, Boaventura. Pluralismo
epistemológico, León Olivé , Boaventura de Sousa Santos,
Cecilia Salazar de la Torre, Luis H. Antezana, Wálter Navia Romero, Luis Tapia,
Guadalupe Valencia García, Martín Puchet Anyul, Mauricio Gil, Maya Aguiluz
Ibargüen, Hugo José Suárez, Bolivia, Muela Del Diablo editores, 2009, pag. 13.
[3] OLIVÉ, Leon. Pluralismo
Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia, 2009.
[1]
ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 –
2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[2] LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a
civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
[4] SANTOS, Boaventura de
Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores,
Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del
diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento
del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz,
Bolivia, 1994.
[5] BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São
Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et
Manifestes, Paris, 2005.
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