terça-feira, 18 de dezembro de 2012

1274- Pluralismo epistemológico e modernidade - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


Pluralismo epistemológico e modernidade

José Luiz Quadros de Magalhães


A modernidade parece estar chegando ao final. O que estou chamando de modernidade começa (como referência simbólica) em 1492. Neste ano dois fatos marcam o inicio do processo de formação do estado moderno e com este, o direito moderno uniformizado e uniformizador; o exército nacional; as moedas nacionais; os bancos nacionais; o capitalismo; o povo nacional; a polícia; a burocracia estatal; o direito internacional; as ideias de democracia representativa; a separação de poderes; o liberalismo; o fascismo e o nazismo; o socialismo; o stalinismo; as constituições nacionais; os direitos humanos entre outras ideias e instituições que marcam a modernidade. Em tudo isto há uma marca comum que marca a modernidade: a ideia de uniformização; homogeneização; normalização (que gera hegemonias) e a negação sistemática da diversidade, o que acontece, inclusive (muitas vezes) com a percepção de direitos humanos e do direito internacional (neste ultimo caso muito claro: o direito internacional não é internacional mas sim europeu). É desta modernidade fundada sobre a ideia de normalização e uniformização que estou falando quando afirmo que parece estar chegando ao seu final. As transformações recentes no direito constitucional com o estado plurinacional na Bolivia; e a repercussão destes movimentos no direito internacional anuncia um direito que pode romper com 500 anos de tradição uniformizadora e hegemônica comandada por uma visão estritamente e estreitamente europeia. O mundo europeu (moderno) está chegando ao final (parece) e a partir deste fato precisamos pensar alternativas.
Colocamos aqui uma placa de alerta: durante algum tempo prevaleceu a ideologia (no sentido negativo do termo) do fim da história. Claro que esta afirmativa é falsa, grosseiramente falsa. Não há fim da história pois a história, a transformação permanente de tudo o que somos e de tudo o que nos cerca é, talvez, a condição única comum de toda vida e de tudo que acontece no universo. Somos seres históricos na medida em que podemos construir nossa própria história individual e coletiva. Somos história na medida em que vivemos em um universo em processo permanente de transformação, em que mudamos todo tempo assim como tudo o que existe, e nos diferenciamos do resto pelo fato (até onde é possível saber) que podemos racionalmente, com intenção determinada, construir as sociedades em que vivemos e estabelecer relação de comunicação com outras formas de compreensão do mundo e da vida, e com estas aprender e transformar. Assim somos seres que sofremos o impacto da transformação permanente do universo; de nossa biologia e de nossa psiquê. Mesmo que não queiramos, mudamos. Mudamos fisicamente; biologicamente; psicologicamente; intelectualmente. A péssima noticia para os conservadores é o fato de que, mesmo que as pessoas não queiram mudar, elas mudam, todo o tempo. Basta acordar e experimentar que a mudança ocorre, mesmo que não queiramos. Mas temos algo a mais: não só, apenas, sofremos mudanças que não controlamos ou desejamos como também podemos mudar algo segundo nossa intenção e desejo. Não há aqui nenhuma pretensão inocente ou declaração romântica de que podemos tudo. Nossa possibilidade de liberdade reside na nossa capacidade de compreender os diversos limites, das mais variadas ordens, que se colocam entre nós e a construção da nossa vontade e de nosso agir. Somos condicionados por nossa história; pelo inconsciente; pela história das sociedades; pela genética e toda a biologia; pela química; pela ideologia (pela nossa e pela que nos é imposta), entre outras coisas, podemos, apesar de tudo isto e com tudo isto, encontrar nossa liberdade. Nossa liberdade será possível quando entendermos os processos diversos de condicionamento de nosso pensar e agir. Esta é nossa maravilhosa possibilidade de liberdade. A única liberdade possível, a liberdade consciente, inclusive, do inconsciente.
O século XXI começou com uma importante novidade: o estado plurinacional enquanto construção social que desafia a teoria do direito e a teoria constitucional moderna. Embora possamos encontrar traços importantes de transformação do constitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e da Venezuela de 1999 são as constituições do Equador e da Bolívia que efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar, inclusive, uma ruptura paradigmática não só com o constitucionalismo moderno mas com a própria modernidade.
O processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio para os estudiosos do tema.
É fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam a estudar e compreender o mundo em que vivemos se voltem à tarefa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os últimos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo muitas de suas criações. É obvio que uma ruptura, uma mudança paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca será total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o futuro estará impregnado do presente.
Não estamos negando as contribuições da modernidade européia e suas revelações de encobrimentos passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história (não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos, revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações. Muitos dos encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão agora se revelando.
O que pretendemos neste artigo é buscar entender um pouco mais as rupturas possíveis apontadas pela idéia de pluralismo epistemológico a partir da fascinante experiência boliviana de estado plurinacional.
São vários os eixos que devemos estudar e discutir para entendermos a grande novidade que representa para o direito e a teoria do estado a Constituição boliviana e equatoriana e a idéia de um estado plurinacional. Em outros artigos e livros discutimos outros aspectos do direito à diversidade e o estado plurinacional. Acreditamos, ser importante compreender o processo em curso na Bolívia a partir da Constituição Plurinacional e para isto precisamos entre outros temas, compreender o  pluralismo epistemológico. Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser a sustentação deste novo constitucionalismo e de um possível novo direito internacional.[4]

Pluralismo Epistemológico
        
         Já faz alguns anos que sempre pergunto em sala de aula e palestras em diversos lugares sobre os filósofos mais conhecidos pelos presentes. Peço que os assistentes digam o nome do primeiro(a) filosofo(a) que vier a sua cabeça. A resposta é muito semelhante, em qualquer faculdade, cidade, estado ou país: invariavelmente aparecem majoritariamente alemães e gregos (em geral, entre os dez primeiros nomes citados 8 são de alemães e gregos) e depois um francês, inglês ou italiano. Raramente aparece um nome de uma mulher, que quando aparece são as mesmas Simone de Beauvoir e Hannah Arendt. Após o “teste” a habitual provocação: “quer dizer então que só os homens alemães e gregos pensam?”
         Ora, esta brincadeira é apenas para introduzir uma discussão: como a hegemonia militar, econômica e cultural europeia construída na modernidade foi capaz de encobrir outras culturas, outras filosofias, outras formas de pensar, sentir e compreender o mundo.
         É preciso compreender alguns dos vários mecanismos postos em marcha para sustentar a hegemonia ideológica europeia (ocidental). Em primeiro lugar, a defesa de uma história linear foi fundamental para construir a justificativa de uma suposta missão civilizatória. A ideia de que os povos e suas culturas se encontram em estágios distintos de evolução resultou na compreensão de que a cultura mais desenvolvida (obviamente a que tem mais poder militar e econômico para dizê-lo), ao intervir em outras culturas está levando desenvolvimento e avanços civilizacionais. Esta missão civilizatória será a justificativa, especialmente para os que cometem os assassinatos, invasões e espoliações, mas também, de certa forma, para os espoliados aceitarem sua condição. Desde então o discurso vai se tornando mais sofisticado, mas desde o discurso de evangelização até o discurso da intervenção humanitária, para levar direitos humanos e democracia, estes discursos encobrem as reais motivações que movimentam os civilizadores.
         Estes quinhentos anos marcam encobrimentos. Como mencionamos primeiro capítulo, o estado e o direito moderno tem uma base que é fundamental para a sua compreensão: para que o poder centralizado seja reconhecido este estado, e este direito moderno, precisa uniformizar, padronizar, homogeneizar. O estado e o direito moderno se reproduzem, portanto, em sistemas hegemônicos, em qualquer instância. Assim, nos estados modernos vemos a hegemonia de um grupo étnico (e ou também econômico e político) sobre os demais, o que se reproduz no direito comunitário (a União Europeia alemã) e no direito internacional (europeu).  
Por todo o mundo, povos e suas culturas foram exterminados; idiomas desapareceram; formas de produzir e de viver, formas de pensar e sentir foram ocultadas ou para sempre desapareceram.
         Uma subjetividade hegemônica (a partir de parte da Europa) será gradualmente e violentamente universalizada. Esta subjetiva (forma de ver e interpretar o mundo) será levada ao todos (ou boa parte) do mundo. A exportação de livros, teorias, cultura será feita a partir de um imenso aparato construído a partir da hegemonia econômica, sustenta na inicial hegemonia militar. Povos serão privados de sua música, sua arte, sua forma de comer e pensar. As universidades ocidentais (Europa ocidental e EUA) passarão a ser o destino de alunos de todo o mundo. Ali será ensinada como universal a filosofia ocidental (leia-se ocidente como uma construção das culturas hegemônicas de alguns estados hegemônicos da Europa). Nestes centros serão, também, ensinados a economia (a forma de produção de parte dos estados da Europa ocidental) como sendo a única forma econômica possível. A partir destes centros uma gigantesca indústria cultural (na segunda metade do século XX especialmente os EUA) ditará comportamentos, modas, gostos e criará padrões comportamentais que sustentaram uma sociedade de consumo global.
         A ciência será apenas a ciência (ocidental), e daí só terá valor a medicina e outras práticas locais, que agora com o selo da “ciência” (a nova religião) passarão a ser postos como universais.
         E tudo que foi encoberto? A mesma tecnologia, conquista da ciência ocidental, começará a criar espaços de comunicação. O que estava oculto, o que não tinha espaço para se manifestar começa a aparecer. A resistência de inúmeros grupos étnicos por todo o mundo começa a ser visto. Estes grupos começam a se comunicar, o que estava oculto passa a ter visibilidade. Assim começamos a perceber, lentamente, que a suposta linearidade histórica é sim uma poderosa ideologia para sustentar uma supremacia construída pela força militar. A linearidade passa a ser substituída pela complementaridade. As culturas, as diversas filosofias, ciências, técnicas, epistemologias, teologias entre outros espaços de compreensão e sentimento podem ser vistas como complementares. Para isto é fundamental superar qualquer tentativa de hegemonia ou qualquer pretensão de submissão ou encobrimento. A hierarquia cultural deve ser superada.
         Se nos percebermos como seres autopoiéticos (autoreferenciais e autoreprodutivos) descobriremos que somos o limite de nossa própria compreensão e percepção do mundo. Assim podemos dizer que, entre nós, e o que está fora de nós (que podemos chamar de realidade) está sempre, inevitavelmente nós mesmos.
Portanto, um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres vivos, autoreferenciais e autoreprodutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela[1], trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a ideia de autoreferência que se aplica para toda a ciência.[2]
Estudando a aparelho ótico de seres vivos[3], os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências ocidentais durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada observador é um mundo, um sistema autoreferencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.
Somos seres autopoiéticos (autoreferenciais e autoreprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado[4]. Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
A partir da compreensão da autopoiesis podemos começar a compreender o enorme poder que decorre da uniformização das subjetividades, da uniformização do mundo e de sua compreensão e do proposital encobrimento de outras epistemologias, outras filosofias, outras ciências, outras formas de viver e sentir o mundo.
Todo um aparato é construído pelo estado moderno e pelas instituições modernas (o exército; o povo nacional; a policia; a escola; a mídia) para construir as compreensões do mundo que fazem parte do senso comum, através do qual as pessoas interpretam o mundo. Construir as pré-compreensões, construir os significados iniciais das palavras básicas é a tarefa moderna uniformizadora. Quem controla os processos de construção do senso comum detém muito poder sobre o comportamento das pessoas. Resta pensar: onde são construídos os significados originários das palavras e de tudo mais? A resposta pode ser surpreendente e ajudará a explicar a gravidade dos ocultamentos sistematicamente realizados nos últimos quinhentos anos.
Outro pressuposto que sustenta e procura justificar a hegemonia europeia é a naturalização das ciências sociais (especialmente a economia e o direito) e a despolitização do mundo.
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder que se tornou hegemônico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-política é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.”[5] Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos e sim direitos naturais, devemos nos perguntar quem é capaz de dizer ou quem pode dizer o que é o natural humano em termos de direitos?
Ao contrário, se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo que o conteúdo destes direitos deve ser construído nos diversos e plurais espaços de convivência social, pelo diálogo aberto, do qual, todos, possam fazer parte sem hegemonias. Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro espaço sacralizado, intocável. Neste outro espaço encontraremos o significado sacralizado do que é natural. Quem é este que pode dizer o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? Não. A resposta, por tudo o que foi dito até aqui é muito simples: aqueles que têm poder para dizê-lo.
Outra justificativa recorrente construída pela subjetividade hegemônica para justificar sua própria hegemonia é a exaltação da concorrência e da vitória do melhor como razão da supremacia de uma cultura sobre as demais. Todo aparato cultural, de entretenimento e todas as justificativas de enormes desigualdades, sustenta-se na ideia de recompensa pelo maior esforço. Não se conta, entretanto, quem criou o jogo e estabeleceu suas regras, uma vez que regras distintas levariam a resultados distinto, assim como jogos distintos levariam a vencedores distintos. Isto, simplesmente não é posto em discussão. O jogo é naturalizado. Não defendo, é claro, que devemos jogar e vencer. A tese central deste livro é justamente o contrário. Se jogarmos e vencermos, perdemos muito pois eliminamos a diversidade. Acabamos com a possibilidade de aprendermos com a enorme diversidade que é ocultada sob o titulo de “perdedores”. Não pode haver cultura vencedora, nem sistema econômico (economia gera cultura) vencedor, e é claro não pode haver uma filosofia ou uma epistemologia vencedora. Assim todos perdemos, e muito, pois perdemos a diversidade, a possibilidade de ver mais, compreender mais, a partir de um sistema que possibilite a percepção de complementaridade presente na diversidade e sistematicamente negada pela modernidade.
Assim, uma cultura hegemônica (vencedora) nos faz desaprender (ou nunca nos ensinou) a conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea estas características são ainda mais valorizadas. Somos levados a sempre escolher “o melhor”. Nos programas de televisão não se escuta simplesmente uma musica. Este prazer de ouvir uma musica vem acompanhada quase sempre com a escolha do melhor cantor, a melhor musica, o melhor calouro. A competição é alimentada em todo momento, em todas as atividades. Na escola é escolhido o melhor aluno, a melhor composição, a melhor monografia, a melhor nota em cada matéria. Esta competição permanente nos leva inconscientemente a reprodução da lógica do melhor em quase tudo: quem é o nosso melhor amigo? Qual a melhor pizza da cidade? Qual o melhor churrasco? E o melhor tempero? A melhor cerveja, o melhor escritor, o melhor livro, o melhor argumento, o melhor candidato, o melhor professor, o melhor samba enredo e a melhor escola de samba, o melhor...
Não é necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa impossibilidade momentânea (que a cultura de massa vai tornando possível cada vez mais) de construir um consenso sobre o que é melhor, que ainda nos salva do totalitarismo. O problema será o dia quando todos concordarem sobre o que é o melhor (estávamos quase lá quando veio a crise de 2008).
O texto deste livro, se publicado em uma revista “cientifica” fiscalizada, controlada, padronizada, limitada pela qualificação oficial, onde poucos dizem para muitos o que é bom e correto, o que é cientifico, tem que se conformar aos padrões do que é melhor. Tem que ter uma introdução, um desenvolvimento, e uma conclusão. Em muitas publicações exige-se um resumo, um abstract, palavras chave, bibliografia, seguir as regras da ABNT, ser escrito em “Times New Roman”, alguns centímetros acima, outros abaixo, alguns do lado outros do outro lado, citar outros autores e repetir o que eles disseram, etc, etc, etc... E se não citar um monte de autores considerados os melhores pensadores, aí acabou tudo. Não vale nada.
Já que é para citar, o filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le Monde des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos parar de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito? 
Por este exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o aprisionamento do pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário, diante do qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras criadas para padronizar crianças e adolescentes ensinando-as a pensarem com “lógica”. O império da forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é uma forma de como a escolha do melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos acesso ao novo, ao livre, ao diferente.
A história do pensamento científico tem nos mostrado nos últimos séculos que uma ideia, uma teoria que se tornará majoritária nasce minoritária e quando se torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de ser transformada. Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton, Marx, Freud e muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a unanimidade com certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda de nada. As novas teorias, as novas ideias filosóficas, políticas, econômicas têm que envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já estão no momento de renovação e transformação.
Uma sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a pluralidade pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da ideia de escolha do melhor corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.
Voltemos à ideia do que é melhor? Quando uma idéia política se torna hegemônica como o liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta ideia vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor. Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades complexas contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de intenções? A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O problema reside no fato de que as condições de percepção do mundo, das ideias, das pessoas, são variadas, diversas, são mundos de percepção distintos reforçados pelas grandes metrópoles, pela sociedade cosmopolita dos grandes centros urbanos. A massificação, a busca da homogeneidade como forma de construção de consensos tem repercussões perigosamente totalitárias como a hegemonia irrefletida, fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal contemporânea.
Slavoj Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o livro dos sonhos o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção do real com conseqüências poderosas.
Freud fez uma monumental descoberta: o inconsciente. Como médico, Freud percebeu que diversas patologias apresentadas por vários pacientes não tinham uma motivação física. Assim, alguns pacientes não andavam ou não enxergavam, não por um problema física mas por outra motivação encoberta, localizada no inconsciente até então inacessível. Estas patologias eram então causadas por traumas que foram recalcados (reprimidos), que foram escondidos. O importante nesta descoberta reside no fato de que, estas experiências traumáticas recalcadas (reprimidas) foram escondidas não se sabe onde, e o pior, as pessoas que recalcam (reprimem) não sabem sequer que recalcaram. Em outras palavras, a pessoa que escondeu de si mesma um trauma, não só não sabe onde escondeu como sabe mesmo que escondeu. A partir daí o genial Freud vais desenvolver os processos que podem permitir o acesso ao inconsciente, e desta forma trazer a tona os recalques a combatê-los. Ora esta teoria tem tudo a ver com o que estamos discutindo neste livro. Encobrimentos, recalques, hegemonias sustentadas em falsas teorias e filosofias universalizadas.
Uma das formas desenvolvidas por Freud para acessar o inconsciente foi a interpretação dos sonhos. Freud percebe que nos sonhos existem pensamentos latentes (recorrentes) que podem nos dar a pista para acessarmos o que foi recalcado (reprimido). Uma vez descoberto o que foi ocultado (reprimido; recalcado), podemos combatê-lo. Em outras palavras, nos construímos uma estória na qual estão presentes os nossos pensamentos latentes que se escondem naquele desenrolar de fatos criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu desenvolvimento. Para encontrar estes pensamentos latentes que podem revelar o que foi recalcado (encoberto)  é necessário encontrá-lo escondido nas entrelinhas desta estória.
Trazendo isto para a política, podemos entender, por exemplo, o processo de construção da ideologia nazista e entender como esta ideologia do ódio se tornou hegemônica durante algum tempo na história de alguns lugares. Para isto, vamos inverter o processo acima descrito na ordem de construção histórica, uma vez que, o processo de análise visa descobrir o encoberto e a partir daí combatê-lo e superá-lo, ou seja, é um processo de libertação. O que vamos explicar a seguir e o processo inverso, ou seja, como, sabendo dos mecanismos de encobrimento e recalque é possível manipular uma parcela expressiva da sociedade, levando as pessoas a agirem de determinada maneira que não fariam se pudessem ver a realidade encoberta.  A sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação, o Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos (e os traumas recalcados) daquela sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas idéias? Criando uma estória onde os desejos e medos (e os traumas recalcados daquela sociedade) de milhões de alemães estejam presentes. Esta estória terá então o condão de levar as pessoas, na busca da realização de seus desejos e superação de seus medos (e na superação dos seus recalques – que a está matando), na direção dos interesses de quem criou a estória. Nesta estória o estrangeiro, o judeu é responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário e o inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são as potências estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória construída, mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão dos estrangeiros e especialmente os judeus. A estória contada repetidas vezes legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite nisto.  Enquanto milhões se mobilizam em torno desta estória, aqueles que detém o poder realizam os seus desejos e se protegem dos seus medos. Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a construção da estória hoje hegemônica na imprensa conservadora, de que podemos resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais polícia, mais direito penal, com o encarceramento em massa, criando personagens que fogem da noção de humanidade como o bandido, o monstro violento, o menor infrator e outras nomeações simplificadoras, toda uma política estatal é justificada e defendida pela maioria, que é incapaz de perceber que está agindo contra seus próprios interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a explicar porque milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na história da humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem desejos e medos (e contemplam os recalques) de uma maioria, direcionando estes para outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.
Este jogo de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.
Nas palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as idéias dominantes não são as idéias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular ‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.” (Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez, 2004, page 25)
Zizek observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação das relações de dominação e de exploração social. Logo a hegemonia ideológica não se constitui no caso onde um componente particular ocupa o vácuo de um universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta entre ao menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos secretos da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças de dominação.
Zizek menciona como exemplo o cinema demonstrando como este pode despertar um desejo e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma estória, dar um sentido que atende aos interesses da classe dominante aos desejos inconscientes das pessoas.
Retomando Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É fundamental diferenciar a estória do sonho, o seu texto explícito, dos pensamentos latentes manifestados nesta estória.
De uma maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicado ao populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90 até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...
Estas reflexões nos revelam processos e estratégias de encobrimento e dominação que nos ajudam a entender a era europeia e a unicidade filosófica e epistemológica de rebaixa e esconde o considerado diferente como já dito no primeiro capitulo.
Neste sentido a diversidade epistemológica é uma revolução que representa a superação da modernidade em suas bases uniformizadoras. É justamente neste sentido que pensamos a diversidade epistemológica como fundamento de um direito internacional que não seja mais europeu mas sim plural. Um direito internacional e instituições internacionais que possam ir além da visão europeia uniformizadora dos estados nacionais que sempre (hoje quase sempre) encobrem diversidades de povos e culturas reveladoras e um mundo mais amplo. O direito internacional para efetivamente refletir a complexidade do planeta e responder a alguns dos seus desafios não pode mais se fundamentar em uma matriz jurídica essencialmente europeia. O direito internacional, para ser internacional tem que ser um direito plural ou em outras palavras, não pode haver um direito internacional para diversos direitos (nos seus fundamentos teóricos e filosóficos) que possam formar o sistema internacional efetivamente plural e comum. A construção deste direito, desta forma, aponta para uma efetivamente consensual e logo plural, onde a construção dos consensos sejam sempre provisórias, onde a discussão de tudo nunca seja interrompida por nenhuma maioria (ou minoria) hegemônica. Este será um direito de natureza comum e plural, pois não será majoritário ou hegemônico, ou que de alguma forma parta de qualquer superioridade, seja histórica, epistemológica, filosófica, cultural, militar ou econômica.
O pragmatismo nunca mudou o mundo. Nenhuma revolução, nenhuma grande transformação histórica fundou-se em qualquer senso prático. O pragmatismo mantém o mundo como está até não suportarmos mais.
Para finalizar citamos e indicamos a leitura do livro Pluralismo epistemológico.[6]
“El mundo es un pluriverso político, cultural y cognitivo. La vida se organiza y experimenta de varios modos. Se produce conocimiento a través de una diversidad de estrategias, de procesos de imaginación, que permiten comprender las diversas dimensiones de la naturaleza y a nosotros como parte de ella. No sólo existe una pluralidad de formas de conocimiento que corresponde a la diversidad de culturas sino que también al interior de cada cultura se desarrolla una pluralidad de formas de pensamiento. En este sentido que las pretensiones de verdad que se esgrimen en cualquier cultura acaban siendo una forma de desconocimiento de la diversidad constitutiva de su forma de vida, además se convierten en un acto represivo que desconoce el despliegue de una pluralidad de formas de pensar en los más diversos ámbitos, desde el estudio de los procesos de la naturaleza en sentido amplio hasta los procesos sociales y políticos.
La modernidad ha contenido en su historia las pretensiones de verdad universal a través de religiones monoteístas así como de la estructura de legitimación y validación de las formas de conocimiento que se han desarrollado bajo la noción de ciencia, pero también ha contenido a la vez una proliferación de estrategias teóricas para sostener esa pretensión de universalidad así como otras que, de facto, han mostrado que no hay un único modo de pensar y conocer. La misma historia de la ciencia se encarga de mostrar la temporalidad y la falibilidad de las teorías aunque no necesariamente su irrelevancia. La pluralidad de formas de pensamiento responde a la temporalidad de las formas de vida social pero también al hecho de que el conocimiento por lo general es producto de la imaginación, como ejercicio de libertad en procesos de trabajo y producción intelectual.”





Conclusão

         Já trabalhamos em outros livros e artigos aspectos fundamentais para compreender a modernidade e uma possível superação das suas bases essencialmente homegeneizadoras. Um tema central já trabalhado é o confronto entre  uniformização “versus” a diversidade. O Estado moderno é uniformizador, normalizador. Desta uniformização (homogeneização) depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para que os diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados (que começam a ser construídos no século XVI) reconheçam o único poder central do Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as identidades pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que podem ser representados com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo, os mouros e judeus da península ibérica) simbolizada pela queda de Granada em 1492 e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da uniformização de valores por meio da religião obrigatória que se reflete no direito moderno com a uniformização do direito de família e do direito de propriedade que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como base da economia moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco nacional, um exército nacional e uma polícia nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito moderno segue este padrão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no direito internacional (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança). Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito à diferença e o direito à diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda maior em se admitir o direito à diversidade como direito coletivo. O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua proposta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como resultado do diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a construção de um novo argumento. Não há uniformização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da compreensão de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um pluralismo epistemológico[3]. A enorme dificuldade do direito moderno em reconhecer a diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalismo plurinacional: este constitucionalismo se constrói sobre a diversidade radical, que é seu fundamento. Por isto tudo, a sua enorme importância de um direito internacional plural e não mais meramente hegemônico e europeu.
           Um segundo eixo importante é o estudo da relação Constituição e democracia, e como a democracia consensual (essencial para viabilizar qualquer idéia de democracia no direito internacional), pode superar impasses históricos da democracia representativa majoritária. O estudo deste aspecto do constitucionalismo moderno é muito importante para entender uma das contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera a modernidade européia). O constitucionalismo moderno não nasceu democrático e sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente do movimento operário no decorrer do século XIX.[1] O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível com a democracia majoritária e mesmo após o “casamento” entre constituição e democracia representativa majoritária a resistência do liberalismo sempre foi muito grande aos mecanismos efetivamente democráticos includentes.[2] De certa forma assistimos isto até hoje quando os imperativos econômicos liberais impostos pela União Europeia (o banco central europeu) e organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional ignoram ou até mesmo combatem mecanismos democráticos representativos que interfiram em pseudo verdades econômicas. O “novo constitucionalismo” que se constrói na América do Sul trás consigo o conceito de democracia consensual não hegemônica, para o qual, as construções teóricas modernas dos direitos fundamentais, sobre a necessidade de mecanismos contramajoritários e da existência de vitórias temporárias de argumentos debatidos, podem não ser aplicáveis (veremos isto mais adiante). Não falaremos mais de argumento vitorioso ou de melhor argumento, o diálogo não será interrompido pela votação e a conquista da maioria, e, logo, não serão necessários mecanismos contramajoritários onde a regra será o permanente dialogo não hegemônico com fins de construir consensos sempre temporários. Na democracia majoritária representativa moderna a votação interrompe cada vez mais cedo o debate (não há muito tempo para o diálogo) de forma que em muitas circunstâncias só restou o voto sem debate. É necessário decidir, daí a necessidade do voto. Como a decisão deve ser tomada cada vez mais rapidamente, em muitos casos só restou o voto. É a “democracia majoritária” ou a construção de maiorias contra a própria democracia.
O terceiro eixo foi o tratado neste artigo: o pluralismo epistemológico. como dito anteriormente, alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser a sustentação deste novo constitucionalismo e da possibilidade de construção de um novo direito internacional.[4]
              No quarto eixo de discussão discutiremos, em outro trabalho, a possibilidade de superação de um sistema monojurídico ou bijurídico (Canada?) por sistemas plurijuridicos que podem ser caracterizados especificamente pela existência de vários direitos de família e de propriedade e da existência de tribunais (judiciários locais) capazes de solucionar estes conflitos além da constituição de tribunais (pluriétnicos e ou plurirepresentativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de construção de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções consensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias de argumentos de uns sobre outros. Assim, um judiciário que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido, apontando o argumento vencedor e com isto interrompendo o conflito sem solucioná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante e revolucionária para o direito internacional. Acreditamos que os tribunais internacionais não são plurais. Os juízes pensam e julgam a partir de uma perspectiva jurídica europeia. Assim, pouco importa a nacionalidade do julgador se o que ele pensa, se o direito que ele reproduz (sua teoria e prática) é ocidental (europeia e norte-americana). Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argumento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso, uma vez que o conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece latente e certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão rápida, pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados, voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser conquistada no Judiciário: no lugar de um argumento vitorioso, de um lado vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada.
                        Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-afro-latino americana) não pode passar pelos mecanismos uniformizadores do direito constitucional e internacional modernos; a superação do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução dialógica não hegemônica do direito “plurinacional”; a necessidade de busca de um universalismo possível como um desafio teórico filosófico final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e psicanalista Alain Badiou em um texto que ainda será escrito.[5]




BIBLIOGRAFIA:
1-      ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
2-      LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
3-      OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia, 2009.
4-      SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009;
5-      LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010;
6-       DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
7-      BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.
8-      CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
9-      SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
10-   DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
11-  BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316




[4] SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
[1] MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.
[2] No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5
[3] Nas páginas 8 e 9 do livro “El arbol do conoscimiente”os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8

[4] Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.
[5] ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.
[6] SOUZA SANTOS, Boaventura. Pluralismo epistemológico,  León Olivé , Boaventura de Sousa Santos, Cecilia Salazar de la Torre, Luis H. Antezana, Wálter Navia Romero, Luis Tapia, Guadalupe Valencia García, Martín Puchet Anyul, Mauricio Gil, Maya Aguiluz Ibargüen, Hugo José Suárez, Bolivia, Muela Del Diablo editores, 2009, pag. 13.
[3] OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia, 2009.
[1] ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[2] LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
[4] SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
[5] BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005. 

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