domingo, 6 de janeiro de 2013

1288- Aquellos ojos azules - para Caridad - Coluna do professor Virgílio de Mattos


                       AQUELLOS OJOS AZULES

                            Virgílio de Mattos

        Entre o engasgo e o alívio uma imagem ficará pra sempre nas minhas fatigadas retinas: aqueles olhos azuis, muito azuis e, agora exagerando no papel de bobo, fiquei fazendo paralelos com o bolerão: aquellos ojos verdes.
        A notícia já esperada não deixa de ser impactante: Caridad está morta e isso traz consigo toda a dimensão do inexorável. A família ainda tem a delicadeza de me avisar apenas após o enterro (revertere ad locum tuum), evitando alguma maluquice de última hora e afastando a dificuldade que é a viagem daqui até lá.
        Fico pensando em Loyola, o presidente da Associação Internacional dos Machistas-Leninistas – que me nomeou secretário-geral e passamos os últimos dez anos sacaneando um ao outro por isso – e no buraco que será a vida dele, agora sem ela, depois de 53 anos de vida em comum.
        Mas preciso contar como foi que fui fazer parte dessa família, o meu familión habanero que me enche sempre de orgulho e a única vez que me fez triste é exatamente agora, quando ela vai embora. Já não mais a falta de ar, já não mais a inapetência completa, já não mais as dores excruciantes. Agora nem mais a difícil consolidação dos dados a campo das várias pesquisas importam. Agora é descanso, remanso, tranquilidade enfim.
        Volto a 1999 e a professora Beatriz Vargas vem voltando de Cuba, mais precisamente de um congresso a que não quis ir porque acreditava que não poderia estar longe daqui por mais de uma semana e revendo isso penso: como é que a gente pode ser tão estúpido às vezes...
        Bia conta o encontro com Caridad e a excelente impressão que havia causado. Começa a articular sua vinda até Belo Horizonte; já que Nilo Batista a traria ao Rio em breve; com um professor da direita, já morto – por isso não cito seu nome – e com uma outra professora da mesma IFES em que trabalhávamos todos, ela também de direita embora tivesse voltado “encantada com Cuba”, como alardeava pelos corredores, ruas e avenidas.
        Enfim quando chegou aqui o tempo esquentou já na sua primeira intervenção, na vetusta Sala da Congregação, quando Caridad, respondendo de bate-pronto a uma provocação do professor de direita que tinha viabilizado sua vinda e o evento, disse a todos que além de cubana era, com muito orgulho, membro e militante do Partido Comunista de Cuba. Caímos na gargalhada – vários – e aplaudimos – todos – àquela resposta tão linda e tão límpida que calou o provocador e continuamos a série de palestras que ela tinha vindo fazer.
        Foi a convite dela que tanto eu quanto vários outros professores brasileiros lecionamos na escola de capacitação de quadros do Ministério da Justiça a partir de 2000. E que também os amigos dela na España, no México, na Venezuela, em Angola, etc. se tornaram nossos amigos. Acredito que tenha sido nessa época que me tornei, a princípio sem me dar conta, um membro do familión.
        Lembro-me, impactante, a foto do familión comigo abraçado a ela e a Loyola, Lídice e Carlito lado a lado, com a presença súbita e inquietante do cachorro Pirata, aparecendo ao fundo o Lada branco remendado e redivivo; San Miguel del Padrón me parece agora um outro mundo, muito mais distante e inacessível do que era quando Camilo Cienfuegos mandou que Loyola escolhesse uma casa pra ele viver, logo após o triunfo da Revolução, e a casa escolhida foi aquela, muito simples e pequena, porque havia um abacateiro no fundo.
        Gente de escolhas simples e nem por isso menos difíceis, fico pensando na garota pobre que se esforçava pra estudar pedagogia quando os gringos ainda mandavam na sua terra e que ajudou de modo importante, o triunfo da Revolução nas cidades e que depois do triunfo partiu para erradicar o analfabetismo, a miséria de não se saber ler e seguiu ensinando aos que viriam a ensinar a se livrar das próprias misérias, tanto no curso de psicologia, quanto no de direito e nas sólidas pesquisas do Ministério da Justiça de Cuba.
        Pulo a parte do tiro de metralhadora na coxa esquerda que a fez mancar discretamente pelo resto da vida e passo pela graduação em psicologia e o doutorado em Moscou. A família, principalmente os “meninos”, sempre curtiram com ela pelo forte sotaque caribenho com o qual falava o russo. Земля является синий! Foi ela quem escreveu e me ensinou como pronunciar a frase símbolo do cosmonauta que emprestou seu nome a meu neto e que quando eu tentava repetir todos riam.
        A vida é mesmo um instantâneo em preto e branco, minha querida, embora tenha razão Gagarin e a terra tenha a cor dos seus olhos.
        Recebi alguns correios em resposta ao triste anúncio que fiz aos amigos mais próximos. Verinha Malaguti Batista, responsável juntamente com Nilo Batista por ter feito Caridad lecionar por várias vezes no mestrado de uma IES no Rio e grandes amigos, me disse que ficaram “tristes como os tristes tigres!” E Arturo Cano, desde Oaxaca: “Estoy igual de consternado que tú se sentía la fraternidad que ella irradiaba.”
        José Luiz pediu que escrevesse alguma coisa pra registrarmos no blog, mas tá difícil, tô numa tristeza de fazer clave de fá.
        Busquei as fotos para que se pudesse fazer uma homenagem, con la guardia en alto!, e escolhi estas duas: a de 2005, mirando ao sul e a de seu último passaporte, com que mirou o sul espalhando seus conhecimentos.
        Aqueles olhos azuis estão fechados pra sempre agora. Agora acabou. Logo agora que o pior já passou.
  
  
Profa. Dra. Caridad Navarrete Calderón, 2003
 ( a do passaporte)


Porto de La Habana, 2005

Nenhum comentário:

Postar um comentário