sábado, 13 de abril de 2013

1316- O vazio político europeu. As eleições italianas de 2013 - coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


O vazio político europeu As eleições Italianas de 2013

por  José Luiz Quadros de Magalhães
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A eleições italianas de fevereiro de 2013 nos convida a refletirmos a realidade das democracias representativas e majoritárias, radicalmente em crise na Europa e EUA. Não vamos tratar aqui da ausência de opções, mas das falsas opções que se apresentam, muitas vezes mostradas de forma corajosamente inocente. Trata-se da armadilha do discurso moralista de combate a corrupção e do fim das ideologias apresentado por políticos e novos partidos que dizem não se enquadrar nas classificações tradicionais de centro, direita e esquerda. A superficialidade do discurso pode condenar estes partidos ao fracasso, fracasso perigoso, pois o processo em que estas "soluções" se apresentam encobrem as reais causas de tudo o que está ocorrendo.
Em primeiro lugar, podemos nos perguntar o que é ideologia, para podermos entender o surgimento de partidos políticos que se dizem pós-ideológicos ou neutros o que é uma gigantesca bobagem.
A palavra ideologia pode ser compreendida como uma sistema de ideias mais ou menos coerente, por meio do qual acessamos o mundo. Nosso olhar, neste sentido é sempre ideológico. Um outro sentido para a palavra ideologia é a sua compreensão como mecanismo proposital de encobrimento, mecanismo de distorção da realidade. Neste sentido ideologia é mentira. Os mecanismos ideológicos de distorção e encobrimento atuam em dois grandes espaços: na formação de nossa compreensão do mundo, na atribuição de significados aos significantes essenciais (o que a família, a escola e a igreja faz com as pessoas nos primeiros anos de vida), e no encobrimento e distorção dos fatos, nos impedindo de construir nossa interpretação sobre o "real" ao nos impedir o acesso aos fatos, ou então, ao distorcer estes mesmo fatos (o que a mídia, a propaganda, o marketing, a igreja, a universidade, os cursos técnicos e outros aparelhos continuam fazendo com as pessoas para o resto da vida). Reconhecendo que não há fatos puros (não temos acesso ao "real" mas sim a "realidade" que é o "real" interpretado), os mecanismos ideológicos encobrem o "real" (que pode ser compreendido também como sendo o próprio aparelho ideológico). Assim, no lugar de construir nossa interpretação sobre o "real" construímos nossa interpretação do "real" (a realidade) sobre uma falsa representação deste.
Nós, pessoas (seres que vivem), somos autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reproduditos). Isto significa que somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o "real" que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o "real" estamos nós mesmos, e o que podemos conhecer é a "realidade", ou seja, o "real" interpretado. O que chamamos de "real" é um, possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a fragmentos interpretados pelo nosso "olhar". Por vezes encontramos o "real" em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e logo indescritível: a violência de um "campo de concentração", nos muitos que existem por aí. O real é a base para a construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos encontramos e do que fazemos no mundo.
Partidos que se dizem não ideológicos são portanto uma impossibilidade ou algo indesejável. Impossibilidade pois todos nós somos, no sentido positivo, seres ideológicos que permanentemente interpretamos o mundo por meio de nossas pré-compreensões. Indesejável uma vez que um partido sem ideologia (ainda no sentido positivo) seria um partido sem programa, sem marco teórico para compreensão do mundo, da sociedade, da economia e da política. Um partido não ideológico seria portanto um partido de mentira ou ideológico no sentido negativo. Poderiam dizer que estes partidos não se enquadram nas classificações tradicionais modernas ocidentais de centro, esquerda e direita, mas este não parece ser o casos, mesmo porque um partido fora do sistema dificilmente poderia atuar dentro deste sistema. Este é o perigo da crítica generalizada aos políticos e a política. O problema não são os políticos, nem a política, mas como é feita a política e em que sistema se inserem os políticos e a política. Neste sentido, estes partidos sem ideologia (por isto altamente ideológicos no sentido negativo) tendem a reproduzir tudo o que os partidos que eles dizem combater fazem, uma vez que aceitam entrar no sistema e atuam inocentemente dentro do sistema com uma crítica moralista perigosa. Da mesma forma, os políticos antipolíticos ao entrarem no sistema representativo (o partido antipolítico "Cinco Estrelas" da Itália fez 25% do parlamento) tendem rapidamente a serem absorvidos pelo sistema que eles combatem moralmente, logo superficialmente.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek em sua obra "Sobre la violencia: seis reflexiones marginales"1 desenvolve três conceitos de violência que são importantes para entendermos os equívocos das políticas publicas de combate à violência e que podem ser utilizadas para compreender o equivoco das criticas e ações políticas superficiais moralistas que ignoram a necessidade de compreensão e desmonte das armadilhas estruturais e simbólicas do sistema.
Zizek nos fala de três formas de violência:
a) Uma violência subjetiva que representa a decisão, vontade, de praticar um ato violento. A violência subjetiva representa a quebra de uma situação de (aparente) não violência por um ato violento. A normalidade seria a não violência, a paz e o respeito às normas (normalidade) que é interrompida por um ato de vontade violento.
b) A violência objetiva, diferente da violência subjetiva é permanente. A violência objetiva são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e repressiva.
c) A violência simbólica é também permanente. Esta violência se reproduz na linguagem, na gramática, na arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda, e outras formas de representação. Para entendermos melhor, podemos exemplificar a violência simbólica presente na gramática: em diversos idiomas os sobrenomes se referem exclusivamente ao pai ou ainda, o plural, no idioma português, por exemplo, sempre vai para o masculino. Assim, se estiverem em uma sala 40 mulheres e um homem, diremos: "eles estão na sala". O plural para uma mulher passeando com um cachorro será: "eles estão passeando". A violência simbólica, assim como a violência estrutural, objetiva, atuam permanentemente.
Assim, de nada adianta construirmos políticas públicas de combate à violência subjetiva sem mudarmos as estruturas socioeconômicas opressivas e desiguais (violentas) ou todo o universo de significações e representações que reproduzem a desigualdade, a opressão e a exclusão do "outro" diferente, subalternizado, inferiorizado.
Um exemplo interessante: a escola moderna é um importante aparelho ideológico2, reproduzindo a mão de obra necessária para ocupar os postos de trabalho que permitirão o funcionamento do sistema socioeconômico assim como reproduzindo os valores e justificativas necessárias para que as pessoas se adequem e não questionem seriamente o seu lugar no sistema social (e no sistema de produção e reprodução). A escola, portanto, tem a fundamental função de uniformizar valores e comportamentos. O recado da escola moderna é: adeque-se; conforme-se; este é o seu lugar no sistema.
Simbolicamente, a escola moderna diz diariamente isso aos seus alunos, por meio do uniforme. Sem o uniforme, a meia, a calça, a camisa e os sapatos da mesma cor, o aluno não pode assistir a aula. Durante muito tempo, e ainda hoje em algumas escolas, uniformizam-se os cabelos, o andar, o sentar, e claro mais um monte de outras coisas mais complexas como o pensar, o desejar e o gostar. A criança desde cedo deve se vestir da mesma forma, se comportar da mesma maneira, palavras mágicas, sem as quais as portas não se abrem. Pois bem, vamos ao problema: a criança, mesmo que não seja dito por meio da palavra (o que também ocorre), simbolicamente percebe, diariamente, todo o tempo, que não há lugar para quem não se normaliza, para quem não se uniformiza, para quem não aceita a padronização. O recado muito claro da escola moderna é: o uniformizado é o bom; não há lugar para o diferente (não uniformizado); para o que se comporta diferente, se veste diferente, ou de alguma forma não se enquadra no padrão. É claro que esta criança, processando o recado permanente (dito e repetido de várias formas) irá compreender que o padrão é bom e o diferente do padrão é ruim. No seu universo de significados em processo de construção, o diferente deve ser excluído, afastado, punido, uma vez que o que foge ao padrão não pode assistir a aula, não pode sequer permanecer na escola. Logo, quando esta criança percebe alguém ou algo em alguém que para ela, é diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor; a forma do corpo; da fala; do olhar) esta criança irá de alguma forma reagir a ameaça do diferente, excluindo e punindo o diferente "ruim".
Em outras palavras, a escola moderna ensina diariamente a criança a praticar o "bullying". Vejamos então a ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção que padecem, todas, deste mal. No exemplo descrito acima, a escola, o estado, os governos, criam políticas públicas pontuais de combate ao "bullying" (a tortura mental e agressão física decorrente da discriminação do "diferente") ao mesmo tempo que mantém uma estrutura simbólica que ensina a discriminação (o "bullying").
Voltamos aos conceitos de violência: toda política de combate à violência; às drogas; à corrupção, serão sempre ineficazes se não transformarem as estruturas sociais e econômicas que permanentemente criam as condições para que esta violência subjetiva se reproduza, assim como o sistema simbólico que continua, da mesma forma, reproduzindo a violência. Para acabar com a violência subjetiva só há uma maneira: acabar com a violência simbólica e objetiva. Para acabar com o "bulling" na escola só mudando as estruturas uniformizadoras e excludentes presentes permanentemente na escola; para acabar com a corrupção só transformando o sistema social e econômico e de valores (condições objetivas e simbólicas) que reproduzem as condições para que esta (a corrupção) se torne parte da estrutura social e econômica vigente.
De nada adiantarão as constantes políticas pontuais de combate a corrupção, se estas políticas atacarem apenas os efeitos de forma repressiva e (ainda pior) com o direito penal, o aumento do controle e da punição. Os resultados serão enganosos, sempre, se não respondermos algumas perguntas: porque a corrupção? Quais são os elementos estruturais e simbólicos em nossa sociedade que reproduzem as condições para a corrupção?
De nada adiantarão partidos políticos e políticas moralistas de critica à corrupção se estes partidos e os seus políticos não compreendem as causas estruturais e simbólicas da corrupção. Só há uma forma de eliminar a corrupção da política e livrar a sociedade dos políticos corruptos como buscam estes partidos moralistas (como se nesta sociedade e entre os seus cidadãos também não ocorresse corrupção): desconstruindo a sociedade, economia e política estruturalmente e simbolicamente corruptas e construindo algo novo, tarefa que parece fora do alcance dos inocentes discursos moralistas.


______________________
  1. ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
  2. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado - nota sobre aparelhos ideológicos do estado, Biblioteca de Ciências Sociais, editora Graal, 9 edição, Rio de Janeiro, 1985.

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