sábado, 16 de novembro de 2013

1371- Ensaios Jose Luiz Quadros: maquinas processadoras de "falsas" legitimidades (alternativa do novo constitucionalismo)



A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO CONSITTUCIONALISMO DEMOCRÁTICO NA AMÉRICA LATINA

José Luiz Quadros de Magalhães[1]
           
            INTRODUÇÃO: A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 - O RESGATE DO PASSADO, A RESISTÊNCIA NO PRESENTE E O ANÚNCIO DE UM NOVO FUTURO.

            A Constituição brasileira de 1988 nasce em um momento de transição da realidade econômica global. Em 1979 e 1980 chegavam ao poder nas quatro maiores economias do planeta, governos de perfil conservador mas com discurso que passou a ser rotulado pela imprensa como "neoliberal".
            Neste momento víamos o processo que ainda hoje continua na Europa e EUA em crise, de desmonte acelerado do "Estado de bem-estar social", que se fundava no tripé de direitos sociais à saúde, educação e previdência, universalizados, públicos e gratuitos e em uma economia de matriz "keynesiana" onde o estado regulava, planejava e exercia a atividade econômica ao lado do setor privado, o que se refletia, nas Constituições sociais, na existência de dispositivos, capítulos ou títulos da Constituição sobre a "ordem econômica".
            A Constituição brasileira de 1988 nascia, neste momento, podemos dizer na expressão popular, "remando contra a maré" neoliberal. A nossa Constituição traz uma grande relação de direitos fundamentais, individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais. Uma ordem econômica que era no texto originário (antes de começar a ser desfigurada pelas emendas liberalizantes) uma fina expressão de um capitalismo social que valorizava as formas de ganho com o trabalho, como o salário (em sentido lato salário, vencimentos e proventos), e o lucro, desde de que advindo da livre iniciativa e livre concorrência; e limitava as formas de ganho sem trabalho como o juro e a renda (o que pode ser ilustrado pelos dispositivo jamais aplicado e já retirado do texto, de limitação da taxa de juros a 12% ao ano).
            Nossa Constituição nascia uma Constituição social em um mundo que vivia a realidade de uma nova hegemonia representada pela construção ideológica neoliberal. O discurso do capitalismo social e do estado social hegemônico até a década de 1980 agora cedia espaço aos projetos de expansão do capitalismo global e financeiro. Por este motivo, a Constituição de 1988 mal acabara de nascer, já sofria ataques, emendas que começavam a reformar o estado social, abrindo espaço para a desregulamentação da economia e a privatização de diversas empresas públicas e sociedades de economia mista. O Estado deixava de regulamentar e exercer atividade econômica. Gradualmente a Constituição Social e Democrática de 1988 transformava-se em uma colcha de retalhos, em um texto repleto de contradições de uma época de transição. As interpretações desta Constituição começavam também a acentuar os aspectos liberais e reduzir os sociais.
            A Constituição democrática passou a ser defendida por muitos democratas que resistiram ao desmonte de seu texto democrático social. Neste sentido temos uma Constituição Social que passa a ser agora texto de resistência à fúria privatista, que sistematicamente atacava direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, assim como direitos econômicos do povo brasileiro.
            Com um pé no passado, representado pelo capitalismo social em crise; com um presente de resistência democrática e luta por novos direitos, a Constituição de 1988 também anunciava uma nova era constitucional: a era da diversidade e do inicio da superação da modernidade uniformizadora.
            A Constituição Federal de 1988 anunciava o que chamamos hoje de novo constitucionalismo democrático latino-americano, fonte de inspiração democrática para estudiosos do direito constitucional de todo o mundo. Nossa Constituição reconhece o direito a diferença como direito individual e coletivo; assegura o direito dos povos indígenas (originários) e povos quilombolas, abrindo espaço para a construção de um espaço de diversidade individual e coletiva em nosso país, o que começa a ocorrer de forma mais acelerada a partir do século XXI, com algumas importantes interpretações constitucionais realizadas pelo Judiciário e por diversos defensores e estudiosos dos direitos de diversidade.
            Podemos dizer neste sentido, que esta Constituição é um  marco para o futuro. Se em parte bebeu na fonte do passado do capitalismo social; se representa resistência democrática no período de desmonte dos direitos sociais e econômicos; a Constituição de 1988 anuncia também o novo que chegou para ficar e avançar: um direito e uma sociedade plural e radicalmente democrática que hoje se expressa de forma radical nas Constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009).

1- O NOVO CONSTITUCIONALISMO

            Existe um grande risco na análise das Constituições da Bolívia e do Equador: analisá-las sob o enfoque da teoria da constituição moderna europeia. Acredito que utilizar as lentes da teoria da constituição europeia moderna inviabilizará enxergar e logo compreender o potencial de ruptura com a modernidade presentes nestas constituições. Serão apenas mais duas constituições interessantes e diferentes dentro de um paradigma que não mudou na sua essência. Não é este o potencial destas duas constituições. Elas exigem a construção de um outra teoria da constituição, de uma outra teoria do direito, de uma outra teoria do estado. Elas exigem uma teoria não moderna, não hegemônica, e logo não europeia.
            Alguns eixos devem ser percebidos, estudados e aprofundados para percebermos o potencial de ruptura radical que representam as experiências em curso nestes dois países. Estes eixos precisam ser desenvolvidos, mas nos limites destes trabalho serão apenas mencionados. As rupturas possíveis que elencamos a seguir só poderão ser vistas sem as lentes uniformizadoras do direito moderno. Elas ocorrem na realidade social e cultural dos povos que constituem a Bolívia e Equador, que durante muito tempo viveram em ordenamentos jurídicos europeus modernos, que excluíram, ocultaram e tentaram uniformizar estas sociedades diversas. Vejamos:
            1- No lugar da uniformização hegemônica, a partir de um padrão europeu, o reconhecimento da diversidade enquanto direito individual e coletivo pelo ordenamento jurídico;
            2- Decorrente da ideia anterior, a afirmação do direito à diversidade enquanto direito individual e coletivo sobre a ideia de direito à diferença (individual ou coletivo) que implica na superação de qualquer padrão hegemônico estabelecido pelo estado e ainda presente na ideia de direito à diferença (diferente de que?);
            3- Superação da exclusividade da lógica binária, fundada principalmente no dispositivo moderno "nós versus eles" (e da qual decorrem outros dispositivos como inclusão versus exclusão; capital versus trabalho e culturalismo versus universalismo);
       4- Criação de espaços de diálogo, não hegemônico, intercultural (para além do multiculturalismo) que permita a construção de um espaço comum, de um direito comum, em uma perspectiva transcultural, o que implica na superação de uma lógica histórica linear pela ideia de permanente complementaridade;
           5- Substituição de um sistema moderno monojurídico (hegemônico) por um sistema plurijurídico que permita a pluralidade de direitos de família, de propriedade e de jurisdições;
                   6- Igualdade entre jurisdição originária e "ordinária";
            7- Nova concepção de natureza como conceito integral superando a ideia de "recursos naturais", um dos mitos modernos que separa o "homem" da natureza", e transforma a natureza em algo selvagem a ser domado e explorado pela civilização. Isto implica na superação da ideia de "desenvolvimento sustentado", conceito que passou a condicionar a natureza e o meio ambiente às necessidades de desenvolvimento econômico moderno (capitalismo) que implica em mais consumo e mais produção como meta permanente. A prioridade é a natureza e o sistema econômico deve se adequar ao respeito à vida enquanto totalidade sistêmica e não o contrário;
            8- Nova concepção de pessoa superando a ideia do "individuo" liberal que nasce e morre com uma personalidade distinta e separada da comunidade e da natureza. Construção de um conceito de pessoa plural, dinâmica, processual, que não se limita, e não pode ser limitar a um nome coletivo, a um rótulo, a um fato, ou a um nome de família;
             9- Democracia consensual como prioridade;
            10- Judiciário consensual (justiça de mediação) como prioridade;
           11- Pluralismo epistemológico como fundamento do conhecimento, da democracia e da justiça plural;
            12- Superação da dicotomia "culturalismo versus universalismo", o que implica na superação do falso conceito de universalismo (o universalismo europeu[2]).
            O desenvolvimento de alguns destes eixos pode ser encontrado no livro "Estado Plurinacional e Direito Internacional"[3] e promove uma análise inicial de 5 destes 12 eixos.
            No presente ensaio vamos analisar os ítens 9 e 10 a partir de uma crítica ao estado moderno e as distorções da democracia majoritária e a jurisdição estatal uniformizadora e imperial, passando brevemente pela questão levantada no íten 3, ou seja, a necessidade de superação da lógica binária.
            Vamos ao debate:
           
           
A maquina judicial processadora de fatos e legitimadora de decisões previamente tomadas.

            Primeiro precisamos entender a lógica do judiciário: "Roma Locuta, Causa Finita": Roma falou, o "império" disse, acabou a causa, acabou a controvérsia.[4] Esta frase resume a lógica de funcionamento do Judiciário e da democracia representativa majoritária moderna. No Judiciário, a pessoa que tem seu direito violado ou ameaçado (ou entende que isto aconteceu) pode recorrer a este "poder" do "estado", fazendo uma petição (um pedido) onde expõe suas razões e prova o acontecido por meio de documentos, testemunhos, perícias. A outra parte, ré no processo apresenta sua defesa, e pode apresentar documentos, testemunhos ou perícia em sua defesa (embora a responsabilidade de provar a culpa ou dolo de alguém seja sempre de quem acusa). Diante do conflito, o estado, por meio do juiz, interpreta e aplica as leis e a constituição (do estado) ao caso concreto apresentado para ele. A lógica deste processo é a concorrência de argumentos e provas, onde um lado será vencedor. Depois da análise das provas e dos argumentos o Estado se pronuncia e a causa é decidida. Existe a possibilidade do recurso onde a lógica concorrencial que mantém vivo o conflito permanece: recurso (razões do recurso), contrarrazões e finalmente de novo o pronunciamento do estado. Acabando a possibilidade de recurso o estado pronuncia finalmente sua decisão e a causa acaba: "Roma Locuta, Causa Finita".
            Este formato de "solução" de conflitos, nem sempre irá realmente solucionar o conflito, pois incentiva a concorrência de argumentos, mesmo que inicialmente se proponha um acordo, a finalidade não é a busca do consenso, ou do restabelecimento do equilíbrio quebrado pelo conflito, mas é a vitória de uma das partes. A busca da vitória dificulta muito (talvez inviabilize) a possibilidade de consenso e de solução da causa onde as partes se sintam contempladas nas suas expectativas. O perigo deste sistema é que sempre haverá alguém não conformado com a decisão estatal da controvérsia. Na prática, as partes (acusação e defesa) não ficam satisfeitas. O resultado é que o conflito, embora formalmente extinto com o processo, permanece latente. O pior é que o estado (por meio do juiz) não se interessa pela satisfação das partes, mas se contenta em dizer o "direito" para o caso e extinguir o conflito formalmente no processo, sem que se chegue efetivamente a uma solução real que poderia acabar efetivamente com o conflito, o que só ocorrerá com a construção do consenso. Este consenso pode ser obtido por meio da mediação, que obedece outra lógica e estabelece outra prioridade.
            Os problemas, entretanto, não acabam aí. A forma como este judiciário se construiu nos estado modernos, não só incentiva a concorrência (e logo a perpetuação do conflito) como sustenta a hegemonia de um grupo de interesses (uma classe social, um grupo étnico, uma percepção de direito) sobre outros subalternizados e radicalmente excluídos.
            Um filme de Werner Herzog pode nos ajudar a compreender como o poder judiciário moderno, inserido na lógica das democracias majoritárias liberais do estado constitucional moderno, funciona como uma maquina processadora de legitimação de fatos, ou, em outras palavras, como uma situação de opressão e exclusão pode ser "legitimada", formalmente, por uma decisão judicial.
            No filme, "Onde sonham as formigas verdes", um grupo de habitantes originários (aborígenes) pertencente a um grupo ético que habitava a terra que os invasores europeus passaram a chamar de Austrália, tem suas terras ameaçadas por uma companhia que pretende explorar o subsolo para extração de minerais. A formula já foi mencionada: o invasor (que se julga superior) impõe o seu direito, sua economia, sua espiritualidade, a sua percepção da vida e do mundo ao militarmente subordinado, que resiste e insiste na manutenção de sua cultura, de sua diferença (embora conviva com processos de destruição, violência e assimilação).
            Para quem vê o conflito que se instaura, sem a percepção de que ele ocorre em uma situação de hegemonia e logo de imposição de uma cultura sobre outra, a postura da empresa parece legal e ética. Um representante da empresa é escolhido para negociar com os habitantes originários (um grupo originário específico) que habitava aquelas terras. Nestas terras habitavam também formigas verdes, integrantes de um sistema natural que revela o comportamento de toda a natureza como um sistema integral do qual somos parte. A percepção "moderna" hegemônica europeia, se fundamenta na percepção de um "individuo" que não integra a natureza e que percebe esta enquanto recurso natural, que deve ser explorado para a satisfação das necessidades e desejos deste individuo racional e superior a todo o resto. O direito e todo o aparelho estatal da Austrália, onde se passa o filme, é construído a partir  da percepção de mundo do invasor, e, entre os invasores, dos proprietários, e entre os proprietários, dos grandes proprietários. A lógica dual, binária e hegemônica, se reproduz em diversas escalas: o invasor europeu sobre o selvagem aborígene; o proprietário sobre o trabalhador e assim por diante, chegando até a família. O direito moderno reproduz em todas as instâncias a lógica do "nós x eles".
            O representante da empresa acompanhado de um advogado tenta um acordo (fundado no direito do invasor) logicamente sem sucesso, pois ignora a cultura e a espiritualidade do invadido. Com toda a educação, simpatia e correção, a empresa leva a questão ao Judiciário, que obviamente, só poderia decidir a favor da empresa, pois o direito utilizado para "solução" do conflito é o direito de uma parte, e não um direito construído consensualmente por todas as partes envolvidas. Neste filme assistimos este judiciário como uma maquina processadora de legitimidade: quem venceria o processo já estava previamente estabelecido antes deste ser instaurado, mas a existência do processo, dos depoimentos, da provas, do recurso, funcionou como um elemento de "legitimação" para se tomar e explorar as terras dos aborígenes, que tiveram sua oportunidade formal de se defender no processo, fazendo provas e argumentando, e agora devem se subordinar ao estado, que disse o direito. Trata-se de um processo "pseudo legitimador" que extingue "culpas" e destrói o outro sem solução de conflitos mas com a imposição permanente de um direito de um sobre os outros.

Partidos, parlamentos e eleições: a maquina processadora de legitimidades "democráticas" majoritárias de decisões minoritárias.

            Como funciona a democracia representativa majoritária? "Roma Locuta, Causa Finita". Voltamos a formula estrutural do sistema do direito moderno: "nós x eles", como um processo de competição permanente, onde o vencedor proclamado interrompe aquela competição especifica. Uma pergunta: qual a disposição para o debate na democracia concorrencial majoritária? Existe a possibilidade de consensos ou a lógica concorrencial impede o diálogo?
            Vejamos. No processo eleitoral, as partes envolvidas se filiam a partidos políticos com programas e ideologia definida (o que cada vez existe menos). Cada partido, cada parte terá seus argumentos construídos em um espaço interno democrático no partido, onde poderia ser possível construir consensos sobre as questões de políticas públicas as mais diversas. É necessário constatar até que ponto estes partidos têm uma estrutura interna de debate que permita a construção de consensos, ou se ao contrário, as decisões também são tomadas pela lógica majoritária que é concorrencial e impede (dificulta) consensos. Vamos descobrir que, nos partidos, que ainda constroem sua ideologia político-partidária por meios dialógicos, a decisão ocorre por meio do voto majoritário o que inviabiliza (dificulta) o consenso. Entretanto, a maior parte dos partidos políticos neste inicio de século XXI, não guardam mais coerência político-ideológica, o que resulta em um pragmatismo sem ética de busca do poder pelo poder.
            Continuando a lógica da democracia representativa majoritária, estes partidos que construíram suas propostas, políticas públicas e ideologias, se apresentam para as eleições, para então o "povo" escolher (Roma Locuta) e a controvérsia, expressa na busca pela vitória nas eleições, acabe (Causa Finita), com a proclamação da vontade da maioria. Neste momento a minoria (insatisfeita) se submete à maioria, sempre dividida, pois se constitui também majoritária, em processos internos que reproduzem o mesmo mecanismo. Percebemos que este processo inviabiliza qualquer possibilidade de consenso, pois desde o inicio, o que se busca, é a vitória: do partido, do projeto de lei, do melhor argumento (?).
            Melhor argumento? Será que o parlamento efetivamente funciona com a lógica da vitória do melhor argumento? Qual é o melhor argumento? Depois de eleito o governo e de eleitos os parlamentares, o governo continua funcionando da mesma maneira: "Roma Locuta, Causa Finita". Para que o governo governe, este necessita de maioria parlamentar (ou maiorias) para que aprove seu projetos, sua lei orçamentária, seu plano de governo. Continuamos portanto no nível parlamentar com a mesma busca da vitória. O sistema concorrencial continua inviabilizando qualquer possibilidade de construção de consenso. Vamos acreditar, por enquanto, que os argumentos expostos e contrapostos no parlamento sairão vitoriosos na medida de que estes são melhores ou piores, ou, que a discussão no parlamento ocorre em torno de argumentos racionais.
            Vejam que já abandonamos qualquer debate intercultural e que a argumentação acima se desenvolve sob a lógica hegemônica de quem diz o que é direito. Os partidos políticos, em geral, não trazem uma outra perspectiva ou alternativa à lógica moderna, representando, durante boa parte do século XX, a controvérsia entre direita e esquerda, conceitos modernos que se fundam na lógica moderna europeia binária (o centro será o terceiro incluído ou uma farsa política?). O pluralismo partidário poderia sugerir uma possibilidade de superação do pensamento binário na política moderna, o que não ocorreu por força da lógica majoritária e a divisão entre situação (governo) e oposição.
            No parlamento, os representantes, quando discutem o projeto de lei, de reforma legal ou constitucional, argumentam a partir de seu partido político, visando a vitória de seu projeto. São sempre parciais, esta é a ideia. Será que este processo permite que, neste debate, um escute o outro? Haverá efetivamente a possibilidade de diálogo? Há uma comunicação possível? Quando a pessoa que argumenta vai para um debate com a intenção de vencer ou outro, esta pessoa estará aberta para ser convencida, ou todo o argumento do outro será recebido para ser imediatamente desmontado?
            A lógica concorrencial tende ao totalitarismo. No final só restará o "melhor" e o "derrotado" tende ao ocultamento, um esquecimento provisório. Claro que, se observarmos o funcionamento dos parlamentos contemporâneos nas Américas ou Europa perceberemos que, em muitos casos, não se trata de uma concorrência de argumentos, de vitória de melhores argumentos, mas de um mercado como espaço de negociação a partir de posições de força, sustentada por interesses corporativos fora do parlamento. Em outras palavras, o problema da lógica concorrencial que inviabiliza o consenso, e o risco de que a vitória do melhor argumento oculte o argumento derrotado, foi superado pela criação de espaços de negociação que não se fundam em argumentos racionais mas na força e poder de negociação em um mercado político determinado por interesses preponderantemente econômicos.

Desocultamento, modernidade e estado.

         Vivemos um momento de desocultamento. A modernidade, fundada sobre um projeto de hegemonia europeia encontra-se em crise radical, e toda a diversidade ocultada começa a ser revelada e se rebela, em muitos casos, de forma difusa.
            Embora a crise se aprofunde, os governos do "norte" (colonizador, "desenvolvido") ainda insistem nos mesmos discursos e práticas excludentes, para solucionar problemas que são da essência desta modernidade. Estes problemas só serão superados com a construção de uma outra sociedade, uma outra economia, uma outra forma de fazer política e democracia, fundadas em outros valores, sustentados pela diversidade não hegemônica, tanto como direito individual como também direito coletivo.
            A modernidade se funda (assim como todo o aparato criado para viabilizar o projeto moderno) na negação da diferença e da diversidade, tanto em uma perspectiva individual como coletiva. O estado moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos, precisa padronizar as pessoas, para viabilizar o seu projeto de um poder hegemônico, centralizado, capaz de oferecer segurança e previsibilidade para os que construíram o estado e o direito modernos: os nobres, os burgueses e o rei. Esta aliança está em pé até agora. Um bom exemplo podemos encontrar na cobertura, pela imprensa, da posse do novo Rei da Holanda na Europa em 2013. Uma Europa em crise, desemprego por toda parte, e famílias reais de vários lugares do mundo se encontrando em uma festa de casamento enquanto os grandes proprietários (banqueiros empresários) aumentam seus ganhos, mantendo o povo distraído com a festa da nacionalidade (bem moderna) simbolizada pela fantasia do poder "real" e pelo sucesso dos empreendedores burgueses, em meio a falência de uma sociedade individualista, egoísta e estruturalmente, radicalmente, desigual.
            Alguns ponto nucleares da modernidade devem ser compreendidos: o projeto moderno é hegemônico (sempre haverá um grupo hegemônico e diversos grupos excluídos, subalternizados, ocultados); o projeto moderno é uniformizador, onde os considerados mais diferentes serão expulsos (mortos, torturados, presos ou jogados na miséria) e os menos diferentes serão uniformizados; o projeto moderno se funda na lógica "nós" (superiores, civilizados, europeus) versus "eles" (selvagens, bárbaros, índios, africanos, muçulmanos, judeus, mulheres, inferiores, incivilizados, preguiçosos, etc).
            A invasão da América (que será chamada assim pelo invasor, a partir do nome de um invasor), marca o início do genocídio do mais diferente, que é considerado selvagem, menos gente, meia gente, sem alma, ou com meia alma, que por isto pode ser morto, escravizado, torturado. O mecanismo "nós versus eles" se funda em uma lógica narcisista: "sou melhor porque não sou o outro inferior ou, sou espanhol, sou europeu, uma vez que não sou selvagem, bárbaro, infiel, índio, negro ou muçulmano." Importante lembrar que a lógica hegemônica narcisista, ocorre na formação dos estados modernos, onde um grupo se sobrepõe ao outro: o castelhano sobre os bascos, catalães, galegos, valencianos na Espanha moderna, criando o espanhol; ou ingleses sobre celtas galeses, escoceses ou irlandeses, em um processo de ocultamento interno violento. Esta hegemonia se repete ainda internamente, fruto da construção da economia moderna capitalista, onde, entre o grupo étnico hegemônico, ou entre o novo grupo inventado, na nova nacionalidade (franceses, portugueses ou espanhóis por exemplo), existem proprietários, empresários, ricos e de sucesso e de outro lado, empregados, trabalhadores, subordinados (ou na expressão norteamericana: perdedores).
            Portanto, a lógica moderna se reproduz de forma circular autorreferencial indefinidamente e assim será enquanto não rompermos com a sociedade moderna, europeia, ocidental, hegemônica: na invasão da América encontramos um grupo de pessoas que se auto denominam civilizados, que se consideram mais do que o resto do mundo e ocultam a diversidade (o outro inferior); na formação do estado moderno, um grupo étnico interno se considera mais do que outro grupo (como nos exemplos citados de Espanha e Reino Unido acima) e ocultam e proíbem os outros de viverem suas diferenças em relação ao grupo hegemônico que impõe seus valores; no grupo hegemônico também existem aqueles que se consideram mais do que outros menos (o proprietário em relação ao trabalhador no capitalismo moderno); chegando esta lógica na escola, nas relações sociais até na relação familiar, onde o homem é considerado no decorrer dos quinhentos anos modernos ocidentais (inclusive pelo direito moderno, no Brasil formalmente até 1988) como mais do que a mulher.
            A compreensão do pensamento binário presente na lógica "nós" versus "eles" é fundamental para entendermos e superarmos a modernidade na qual estamos mergulhados até a cabeça. Este dispositivo moderno sustenta todas as relações sociais e econômicas e, enquanto não compreendermos isto não sairemos deste circulo infinito de violência exclusão.
            Continuamos matando o outro selvagem, sem alma, menos gente, bárbaro, considerado inferior pelo grupo hegemônico. O dispositivo "nós versus eles" está dentro de nossa cabeça. É preciso romper com a modernidade e desocultar a diversidade, criando uma sociedade não hegemônica, sem "nós" ou "eles"; sem "civilizados" ou "incivilizados"; sem proprietários e empregados.
            No processo de construção desta sociedade moderna, intrinsecamente (porque não tem como esta sociedade moderna ser de outro jeito) desigual e opressora, como já demonstrado acima, é necessário construir justificativas, para que as pessoas possam aceitar passivamente o seu papel social, inclusive para que oprimidos aceitem fazer o papel de "cães de guarda" do sistema protegendo os opressores. Para isto é necessário criar um aparato ideológico capaz de construir as explicações "lógicas" da desigualdade e sua "legitimidade" o que podemos chamar de aparato (ou aparelhos) ideológicos do estado moderno. Louis Althusser[5] irá desenvolver esta ideia (no século 20), e hoje, entre outros importantes pensadores, encontramos Slavoj Zizek[6], que nos ajuda a compreender a ideologia como mecanismo de encobrimento que aparece de forma bem sistematizada pela primeira vez com Karl Marx[7] (no século 19).
            Portanto, para que este poder opressor, uniformizador e excludente se efetive, ele precisa criar justificativas (que serão, é claro, mentirosas ou ideológicas no sentido negativo). Sem isto, as pessoas (uma boa parte) não aceitariam passivamente serem subordinadas e excluídas vivendo em um sistema econômico, social e cultural violento, que é contra as pessoas, que, em grande numero, o defendem, As pessoas prejudicadas por este sistema defendem este sistema e são mesmo capazes de matar e torturar para defender este sistema e aqueles que se beneficiam dele.
            Um destes importantes aparelhos ideológicos do estado é a escola moderna. Ela é criada para uniformizar. Ora, a escola moderna é uma grande descoberta da modernidade para formar pessoas que pensem do mesmo jeito, e que aceitem passivamente o sistema como natural (com o único possível) e pior (como justo). Ou seja, os que têm mais merecem ter mais. Esta escola moderna irá uniformizar comportamentos e valores e negará a diversidade de forma permanente, simbolicamente (todas as crianças em uniformes, pensando do mesmo jeito, com o mesmo cabelo e o mesmo comportamento) assim como em sua estrutura de funcionamento com hierarquia, normas herméticas, horários fechados, disciplinas fragmentadas. Existem ainda escolas diferenciadas para classes sociais diferentes: uma escola para "nós" onde as crianças aprenderam a comandar, mandar, liderar; uma escola para os "nós" e "eles", onde estes aprenderão a obedecer os de cima e mandar nos de baixo (a improvável classe média,essencialmente uma construção histórica que cumpre bem sua função); e ainda a escola para "eles" que aprenderão a obedecer, e saberão muito bem porque estão obedecendo.
            Este estado moderno precisa criar mecanismos para reproduzir as pessoas que ocuparão os espaços para o funcionamento e reprodução do sistema. Assim teremos Universidades que produzem conhecimentos; universidades que reproduzem o conhecimento e forma técnicos que se acham superiores mas não aprendem a pensar; e, cursos técnicos onde as pessoas não precisam pensar, filosofar, saber muito do mundo que os cerca, mas, aprendem bem a fazer a maquina funcionar.
            Além dos aparelhos ideológicos que garantem a reprodução do sistema e explicam por que o sistema é assim, deixando as pessoas acomodadas em seus referenciais fechados autoreprodutivos (autopoiesis), e, ainda, recrutando "cães de guarda" dispostos a morrer pelos legítimos iluminados do sistema, é necessário todo uma aparelho repressor, pronto para funcionar contra aqueles que escaparam, de alguma forma, consciente ou inconscientemente do sistema ideológico, ou, ainda, para punir aqueles que o sistema não deu conta de incluir em alguma das funções. Ora, sempre existem os excedentes do sistema que já cumpriram a função de mão de obra reserva (o que é hoje é desnecessário), assim como, neste sistema moderno, sempre existem os excedentes destinados aos presídios e manicômios, assim como, cada vez mais, os miseráveis que não servem nem para ser explorados.
            Assim, o cerco se fecha para "eles": se não uniformizado pela escola, será reprimido pelos aparelhos repressivos. O problema, no Brasil contemporâneo (e a contemporaneidade é moderna para o ocidente), é que o sistema que deveria aparecer em momentos distintos de forma distinta, uniformizando o pensamento e criando fiéis seguidores de sua falsa "legitimidade" para alguns e punindo e retirando de circulação os outros que escaparam da "ideologia", atua de forma simultânea e sufocante para os de baixo, criando mais violência e ameaçando implodir o sistema moderno de "ideologia" e "repressão". O Brasil vive nesta segunda década do século 21 uma fúria punitiva que ameaça destruir o próprio sistema moderno, não pela sua superação por um sistema includente, mas pelo caos que surgirá pela impossibilidade do estado dar conta de fiscalizar e punir todos aqueles "criminosos" que surgem da desigualdade e da criminalização de  novos comportamentos. Cada vez mais temos mais crimes o que tornou todos os brasileiros em criminosos. Não tem escapatória. Ao não mais diferenciar um "nós" (que não comete crime por que faz as leis - os ricos); o "nós e eles" simultâneo (a classe média que não comete crime porque sustenta numericamente o "nós") dos que facilmente cometem crime pela sua própria existência (pois são tratados como bandidos pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais que reivindicam direitos), o sistema ameaça entrar em colapso.
            Talvez aí seja importante entender, dentro de um pensamento sistêmico, porque o sistema admite concessões (permissões) que ajudam a diminuir a pressão que ocorre ao aumentar a intolerância contra determinadas condutas. Ao criminalizar mais, fiscalizar mais, controlar mais e punir e encarcerar mais, assistimos um movimento simultâneo de permissões de comportamentos que não eram permitidos, criando uma possibilidade de escape da pressão que se exerce do outro lado. Neste ponto é necessário refletir e investigar o que tem sido, cada vez mais proibido e como passou a ser permitido. Planejado ou não, fundado ou não em uma estratégia de poder, o fato é que os sistema tem se comportado desta maneira: ao lado da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, direitos que eram negados, e grupos que eram radicalmente excluídos, recebem agora uma autorização de "jouissance". Recebem permissão (e não direitos) para gozar. O gozo principal está expresso na sociedade de hiper consumo de tudo e todos. Tudo é permanentemente consumido e consumível de objetos a pessoas. Tudo é rapidamente consumível o que gera o enorme mal estar contemporâneo.

Proibir de um lado e permitir de outro.
           
            Um estudo que necessita ser feito, deve ter como objetivo a compreensão de como o sistema reage à pressão crescente decorrente do aumento da criminalização sobre determinados comportamentos e um aumento sufocante dos mecanismos de controle (ideológico e tecnológico) sobre as pessoas, com o aumento das permissões de gozo. Em outras palavras, precisamos investigar quais são os comportamentos cada vez mais proibidos e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas para diminuir a pressão sobre o aumento de controle e repressão.
            Slavoj Zizek, nos traz Jean-Claude Milner:
            "Jean-Claude Milner sabe muito bem que o establishment      conseguiu desfazer       todas as consequências ameaçadoras de 1968  pela incorporação do   chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim,    contra o verdadeiro âmago             da revolta. As exigências de novos       direitos (que causariam uma verdadeira            redistribuição de poder)             foram atendidas, mas apenas à guisa de           'permissões' - a 'sociedade       permissiva' é exatamente aquela que amplia o           alcance do que os        sujeitos têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar        poder   adicional. (...) É o que acontece como direito ao divorcio, ao aborto,            ao casamento gay e assim por diante; são todas permissões mascaradas de             direitos; não mudam em nada a distribuição de poder."
            Zizek cita Jean-Claude Milner[8]:
            "Os que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre           direito e           permissão. Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática    esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, oferece acesso          ao exercício             de um poder em detrimento de outro poder. Uma        permissão não diminui o           poder, em detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder de   quem outorga; não       aumenta o poder daquele que obtém a permissão. Torna a      vida      mais fácil, o que não é pouco coisa"[9]
            A partir destas ideias podemos refletir sobre o "sucesso" (depende para quem) da democracia liberal representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões que esvaziam  e desmobilizam estas lutas por poder, em uma acomodação, decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes).
            O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em bens de consumo. Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A "diversidade" está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal-social representativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda "radical" a direita "democrática", se parecem com a diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente nas "democracias" "ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante.
            Este aparato "democrático" representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder "democrático" representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação.
            As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou em permissões de "jouissance"[10]. Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com "gominhos" e com "carinho", de "verdade".
            O problema da "jouissance" é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade de gozar. Daí tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.
            A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em outras palavras, a democracia representativa pode ser meio (isto é uma exceção à regra) de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela, Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram historicamente alijados deste durante séculos.
            A questão essencial que ocorre nas democracias liberais representativas (e os países acima citados não se enquadram mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos resulta em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em ganho da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquistar este direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a "democracia" representativa, pode cumprir uma outra função não democrática, a de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras, mudar para manter as coisas como estão. Não podemos generalizar mas precisamos observar.
            Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para quem detém o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que está democracia serve como canal de conquista de poder daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras e em 2011 e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012, são alguns exemplos.
            Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras e totalitarismo.
            A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão ideológica, no totalitarismo, onde o poder concede, mesmo não havendo possibilidade do pedido. No totalitarismo o poder, além de criar o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder).
            Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo. Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas e redirecionadas.
            Diferente de submissões (ditaduras e totalitarismos) e de permissões ("democracia" representativa majoritária), um espaço de conquista de direitos não hegemônico significa que o poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum, onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritário (o que acontece na Bolívia, no Estado Plurinacional).

Alternativas: a superação do pensamento binário.
           
            Não há possibilidade de consenso quando a minha satisfação depende da insatisfação de outro. Não é possível uma democracia efetiva consensual no sistema capitalista e as contradições binárias inerentes a este sistema. Consensos nestes sistemas, que envolvam questões socioeconomicas serão sempre ideológicos (falsos) e os consensos realizados em outros campos tendem a sofrer distorções ideológicas negativas.
            A lógica moderna fundada no pensamento binário sustenta a modernidade. Uma armadilha que precisa ser superada.
            O novo constitucionalismo democrático na América Latina, especialmente as Constituições da Bolívia e Equador, aparece como uma alternativa de superação das engrenagens uniformizadoras do estado moderno assim como fundamento para a construção de um outro sistema mundo superando este, construído a partir da hegemonia "ocidental" moderna. No lugar de uma democracia meramente representativa e majoritária concorrencial é construída a alternativa de uma democracia consensual fundada na busca do consenso na solução dos conflitos e na construção de políticas públicas. No lugar de um judiciário que funciona de forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca permanente da mediação por meio da construção de consensos provisórios e sempre democráticos, que objetivem o equilíbrio, ou o restabelecimento do equilíbrio perdido com o conflito.
            Para que seja possível a construção de uma democracia consensual e de espaços "comuns", de um direito "comum" é necessário que algumas dicotomias naturalizadas sejam historicamente superadas como por exemplo: Capital versus trabalho.
            Quais são as dicotomias necessárias?
            Claro que não vamos responder esta pergunta agora. Podemos apenas provocar afirmando  que, mesmo as dicotomias que parecem naturais, como dia e noite, claro e escuro, são simplificações falsas e construções arbitrárias culturais. Não há um dia e uma noite mas um permanente processo de transformação das condições de clima e luminosidade que se rebelam ao contar matemático das horas, minutos e segundos. Não há um claro e um escuro mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da dicotomia ideologicamente (no sentido negativo e positivo do termo) naturalizada de homem e mulher sugiro a leitura de Judith Butler.[11] Não vamos desenvolver estas ideias agora. Isto exigiria muitas páginas e muitas palavras. Seria um livro inteiro. O que queremos sugerir como reflexão nestas palavras finais, neste texto, é que as dicotomias que são naturalizadas, não são naturais, e mais, que devemos superar este pensamento dicotômico binário para viabilizar consensos democráticos e a superação de uma sociedade e economia excludentes. A superação da exclusão não se dá pela inclusão, mas pela superação da dicotomia exclusão versus inclusão. Uma sociedade sem excluídos será uma sociedade sem incluídos. A mesma lógica pode ser aplicada em outras dicotomias: pobres e ricos; capital e trabalho; bem e mal; "nós versus eles"; civilizado e incivilizado. Estas dicotomias não são naturais, não são necessárias, e de sua extinção depende a construção de uma alternativa ao violento mundo moderno.


[1] Professor da UFMG; FDSM e PUC-MG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG.
[2] WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu - a retórica do poder, Editora Boitempo, São Paulo, 2007.
[3] MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Estado Plurinacional e Direito Internacional, Editora Juruá, Curitiba, 2012.
[4] ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas, editora Boitempo, São Paulo, 2009, pág. 19.
[5] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado - nota sobre os aparelhos ideológicos do estado, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985, 2 edição.
[6] ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Coleção Estado de Sítio, Boitempo editorial, São Paulo, 2003.
[7] MARX, Karl. A ideologia alemã - Feurbach - a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista - Marx e Engels, Editora Martin Claret, 2006.
[8] Jean-Claude Milner, L'arrogance du présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[9] Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires, Manantial, 2010.
[10] No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.
[11] BUTLER, Judith. El género en disputa - el feminismo y la subverión de la identidad, editora Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México; Quarta impresión, marzo 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário