domingo, 5 de janeiro de 2014

1385- PARECER: acerca da normativa da Prefeitura de Belo Horizonte sobre a população em situação de rua.

PARECER


NORMATIVA CONJUNTA SOBRE A ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS JUNTO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. APREENSÃO DE BENS. CRIME



Consulente: Centro Nacional de defesa dos Direitos Humanos
Parecerista 1: José Luiz Quadros de Magalhães[1]
Parecerista 2: Tatiana Ribeiro de Souza[2]



1-     DA CONSULTA

       O Centro Nacional de defesa dos Direitos Humanos faz uma consulta sobre a proposta de Instrução Normativa da Prefeitura de Belo Horizonte, ora denominada PBH, para disciplinar a atuação dos agentes públicos junto à população em situação de rua, a fim de responder à antecipação da tutela, no Agravo de Instrumento n.1.0024.12.135523-4/001, que impede o Município de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais de apreenderem "pertences pessoais necessários à sobrevivência".
De acordo com a consulente, existe um Comitê no âmbito da PBH, com composição paritária entre a sociedade civil e o governo, destinado ao acompanhamento e à implantação das políticas públicas para a população em situação de rua. O trabalho do Comitê é desenvolvido por meio de grupos de trabalhos (GTs), dentre os quais encontra-se o de Segurança Pública, responsável pelo posicionamento em relação à proposta de Instrução Normativa acima mencionada.
Após a apresentação da primeira versão, elaborada pela PBH, por meio da sua Procuradoria, ao Grupo de Trabalho Prevenção à Violência, foram sugeridas diversas alterações e solicitado um prazo maior para a discussão da matéria e ampliação do debate. A questão central, no entanto, refere-se ao recolhimento de pertences pessoais da população em situação de rua, que embora tenha sido impedido pela decisão judicial em tela, tal impedimento limita-se ao que a decisão chamou de “pertences pessoais necessários à sobrevivência”.
Diante dos fatos narrados, a consulente questiona se o Município de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais podem, por meio dos seus agentes, recolher algum pertence da população em situação de rua sob o argumento de que não se enquadra no critério de necessidade à sobrevivência.
2- DO DIREITO

Ocorre no presente caso a interessante discussão sobre a existência ou não do direito fundamental à propriedade privada, debate que até então estava adstrito aos ambientes ideologicamente inclinados ao modelo de estado socialista, que não admite a propriedade privada dos meios de produção, ou à superação do próprio estado em direção a uma sociedade comunista. Todavia, no que concerne ao combate à propriedade privada, perpetrado pela Prefeitura de Belo Horizonte contra as pessoas em situação de rua, não se pode considerar que se está diante de um processo revolucionário, mas, ao contrário, de um retrocesso perigoso, a um modelo de governo para o qual as pessoas são separadas em categorias, sendo algumas consideradas como “sujeitos de direitos”, mas outras não.

2.1 Do Direito de Propriedade

Conforme preceitua a Constituição Federal, no art. 5º, XXII, bem como todos os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, “é garantido o direito de propriedade”. Não é menos importante, destaque-se, que o direito de propriedade está condicionado ao cumprimento de sua função social, todavia, uma vez considerado regular o seu exercício, deve ser garantido indistintamente a todas as pessoas. Nesse diapasão, temos, todos, o mesmo direito de propriedade, que se estende sobre todos os nossos bens, úteis, fúteis, "essenciais a sobrevivência" ou não, desde que não viole o princípio da função social.
O agente público, ou qualquer outra pessoa não pode apreender, por exemplo, uma caneta guardada no bolso de um cidadão, nem mesmo seus óculos escuros, ou qualquer outra coisa, sob o argumento de que tais bens não são necessários à sua sobrevivência.
A resposta aos nossos consulentes é não. Nenhuma pessoa ou instituição pode violar o direito constitucional à propriedade privada, quando regularmente exercido, sob a justificativa de não se tratar de bem necessário à sobrevivência do seu titular ou possuidor. Pelo menos é o que se tem estabelecido no Estado de Direito há mais de 200 anos, desde as conquistas fundamentais resultantes das revoluções burguesas.
A intervenção dos agentes do Estado que resulta na retirada dos pertences da população em situação de rua produz um fato jurídico que se aproxima do surrealismo, uma vez que é preciso defender o direito à propriedade privada para proteger aqueles cuja tragédia resulta exatamente da existência da propriedade privada dos meios de produção.
Se a propriedade de uma caixa de papelão é útil ou não, fundamental para a sobrevivência do seu possuidor ou não, só ele pode dizer. Se o objeto parece entulho, isto não interessa ao estado, seu possuidor o decide. Só as pessoas podem dizer a importância de um bem, seja um anel ou um pedaço de pano, para elas mesmas. Um bem que pode parecer lixo para uma pessoa pode ser insubstituível para o seu proprietário. Uma recordação pode ser o único bem para quem o possui, o que pode tornar um pedaço de pano ou um recorte de jornal em algo de valor inestimável.
         Uma pessoa em situação de rua, para quem o estado e a sociedade retiraram tudo, negaram tudo, pode ter em seus pouquíssimos bens um último sentido de vida. Aquilo pouco, sem valor econômico, pode representar o único direito a que teve acesso. O que leva o estado (em qualquer nível) a retirar das pessoas em situação de rua os dois últimos direitos que ainda restaram de forma pouca, incompleta e absurda: o seu pouco ou quase nada direito de propriedade, e o seu direito de escolher permanecer na rua?
         Portanto, a retirada de bens das pessoas em situação de rua é inconstitucional e se for regulamentada, por meio de instrução normativa, estará em flagrante violação dos direitos fundamentais à propriedade e à igualdade.

2.2 Do Direito à igualdade

         Uma vez discutida a inviolabilidade do direito fundamental à propriedade privada, nos termos da Constituição Federal de 1988, devemos nos perguntar se as pessoas em situação de rua têm direitos constitucionais. Questionemos ainda se são pessoas iguais ou, de forma diferente, são menos pessoas, com menos direitos, como a política de intervenção em sua permanência na rua e a retirada dos seus pertences faz parecer.
Temos realizado muitos estudos e publicado muitos textos, artigos e livros sobre o fundamento que marca a história do Direito moderno, para que este, no passado, tenha realizado tanta exclusão. Este direito moderno teve, e mostra que ainda tem, a tarefa de uniformizar, padronizar, normalizar as pessoas, e como consequência disto, excluir e punir aqueles, que segundo o entendimento de uma época, não se enquadram. Este dispositivo, intensamente utilizado nos séculos em que o direito moderno excludente foi construído (desde o século XV), pode ser compreendido na fórmula "nós versus eles".
Consideram-se parte do "nós" aqueles que, em momentos históricos distintos, se enquadram no padrão estabelecido, pelo mesmo "nós", do que é bom, correto, civilizado, superior, etc. Pertencem ao "eles", por sua vez, o subalternizado, o  explorado, como acontece com o índio, o judeu, o muçulmano, o selvagem, o bárbaro, o favelado, o pobre, o morador de rua, etc. O raciocínio que se aplica neste caso em análise é o mesmo que justificou e justifica o estado de exceção permanente, a suspensão de direitos, bem como a agressão e a violência do estado contra este "outro" "diferente".
Diante dos apontamentos acima, o que devemos nos perguntar é como ainda podemos, em pleno Século XXI, utilizar um dispositivo construído no absolutismo, utilizado pelo nazismo e outros regimes de violência e exclusão, no dia a dia de nossas cidades. Vivemos ainda sob a lógica inconstitucional do dispositivo "nós versus eles", o que explica, por exemplo, porque são tratadas de forma diferente as pessoas que vivem em bairros ricos e as que vivem em bairros pobres, as que vivem em condomínios fechados e as que vivem nas vilas, favelas, aglomerados e outras comunidades economicamente desfavorecidas.
Em artigo recentemente publicado, a jurista Vera Malagucci nos lembra que para implantar uma UPP em um bairro de classe média ou alta seria necessária a decretação de "estado de defesa" ou "estado de sítio". Mas como o "Estado" (aqueles que se encontram no poder do Estado) trata as pessoas como se pertencessem a categorias diferentes de humanidade, como se existisse outra "categoria de pessoa", os direitos constitucionais das pessoas pobres ou miseráveis são facilmente violados sem que nada aconteça com os violadores.

2.3 Dos bens necessários à sobrevivência

O que são "bens necessários à sobrevivência"? Será que as pessoas no Brasil têm direito à propriedade apenas dos bens necessários à sobrevivência? Uma casa de campo ou um automóvel de luxo podem ser bens necessários à sobrevivência? Como apontamos acima, uma vez que é assegurado o direito à propriedade, tal direito deve ser garantido a todas as pessoas.
A expressão “bens necessários à sobrevivência” aparece na decisão judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em sede de agravo, conforme apontado no item 1 deste parecer, nos seguintes termos:
"Isto posto, defiro a antecipação de tutela recursal, determinando aos réus que se abstenham de atos que violem os direitos fundamentais dos moradores "em situação de rua", especialmente a apreensão de documentos de identificação e de pertences pessoais necessários à sobrevivência, à exceção de qualquer tipo de objeto ou substância ilícita, sem impedi-los, entretanto, da fiscalização necessária ao bom desempenho da políticas públicas pertinentes"

A propósito da decisão acima, pensemos nos seguintes termos: suponhamos que uma pessoa que desempenha um trabalho regularmente ou bem remunerado, como um professor, um juiz, um médico ou um engenheiro, residente de um bairro de classe média ou alta, saia de casa e seja abordada por um policial que retira seus objetos pessoais: relógio, carteira, documentos e um casaco que esta pessoa levava na mão. Este policial que estava armado leva estes bens para a Prefeitura, joga alguma coisa fora, leva outros para o quartel. Neste caso, o que teria acontecido?
Até mesmo um leigo em direito diria que se trata de furto, ou roubo, e abuso de autoridade. A questão é: qual a diferença entre o que aconteceria na hipótese levantada e o que acontece com as pessoas "em situação de rua"? A diferença, a grande diferença, é que o estado é devedor destas pessoas "em situação de rua" e deveria sim, indenizá-las e tratá-las com respeito e atenção, como reconhecimento da ineficiência e incompetência, em oferecer para todos os cidadãos, direitos constitucionais como segurança, dignidade, moradia e respeito à integridade física e moral.
O que os agentes do estado (prefeitura municipal e polícia estadual) fazem ao retirar os bens, os únicos e últimos bens das pessoas "em situação de rua" é, no mínimo, crime contra o patrimônio, agravado na maioria das vezes pelos requintes de crueldade, dada a situação de fragilidade na qual estas pessoas se encontram.


3        DOS CRIMES COMETIDOS PELOS AGENTES DO ESTADO CONTRA AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
        
Como vimos acima, as pessoas em situação de rua também são sujeitos de direitos, e, por isso, titulares de direitos constitucionais, tal como qualquer outro cidadão. Da mesma forma que o atentado contra o patrimônio de um morador de bairro de classe média enseja a caracterização de crime, toda ação que atente contra os pertences das pessoas em situação de rua é também crime contra o patrimônio. Portanto, qualquer pessoa que venha a retirar os bens da população em situação de rua, seja agente do estado (em nível municipal ou estadual) ou não, estará sujeita às penalidades previstas para os crimes de furto ou roubo, conforme o caso:

Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
(...)
Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à possibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
(...)

A responsabilidade dos agentes públicos pela violação de direitos fundamentais, como na hipótese ventilada, independe de ser por iniciativa própria, ou por cumprimento de ordem ilegal. Da mesma forma, o Prefeito e o Governador, quando for o caso, deverão ser responsabilizados por qualquer “política pública” em flagrante desrespeito aos direitos fundamentais constitucionais.



4- CONCLUSÃO

Por todo o exposto, é o presente parecer pela inconstitucionalidade da retirada dos pertences das pessoas em situação de rua, independentemente de serem considerados necessários à sua sobrevivência.
Sugerimos ainda que a Instrução Normativa da prefeitura oriente os agentes públicos a não importunar ou atrapalhar as pessoas em situação de rua, e que apenas se aproximem quando requisitados para auxiliar ou prestar ajuda, o que deve ser antecedido pelos seguintes dizeres:
“Como representante do Estado, eu estou aqui para, formalmente, pedir desculpas pela incapacidade do poder público oferecer uma condição mais digna para a sua existência. Em sinal de respeito e reconhecimento estou à disposição para ajudá-lo no que for necessário”

É o parecer.

Belo Horizonte, 12 de outubro de 2013.


José Luiz Quadros de Magalhães


Tatiana Ribeiro de Souza



[1] Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), graduação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e professor do programa de mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. É coordenador de projeto do programa Pólos de Cidadania da UFMG e coordenador regional (região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo democrático latino americano. Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de Bogotá; do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires; foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na Universidad Nacional Autónoma de México. Tem diversos livros e artigos científicos e jornalísticos publicados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade, diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e constituição.

[2] Doutora em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mesma instituição onde obteve o grau de Mestra em Ciências Sociais, em 2006. Graduada em Direito pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal, em 1998, iniciou a carreira acadêmica em 2000, após concluir a especialização em Direito Público pela Universidade Federal de Rondônia. É Professora Adjunta da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e ex-professora Titular do Centro Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM e do Centro Universitário Newton, aonde coordenou o Grupo de Estudos em Direito Internacional da Newton Paiva - GEDINP, como Chapter Academic Advisor, da International Law Students Association - ILSA. Iniciou a carreira trabalhando com Direito Municipal e Urbanístico, particularmente com os temas: federalismo, preceitos constitucionais de organização do município, administração pública, região metropolitana e desenvolvimento urbano. Foi pesquisadora do Proyecto PAPIIT IN3088093 “Hacia un estado de Derecho Internacional”, da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM e atualmente é professora convidada da Universidad Libre de Colômbia.

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