PARECER
NORMATIVA CONJUNTA SOBRE A ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS JUNTO À
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. APREENSÃO DE BENS. CRIME
Consulente: Centro Nacional de defesa dos Direitos Humanos
1- DA
CONSULTA
O
Centro Nacional de defesa dos Direitos Humanos faz uma consulta sobre a
proposta de Instrução Normativa da Prefeitura de Belo Horizonte, ora denominada
PBH, para disciplinar a atuação dos agentes públicos junto à população em
situação de rua, a fim de responder à antecipação da tutela, no Agravo de
Instrumento n.1.0024.12.135523-4/001, que impede o Município de Belo Horizonte
e o Estado de Minas Gerais de apreenderem "pertences pessoais necessários
à sobrevivência".
De acordo com a
consulente, existe um Comitê no âmbito da PBH, com composição paritária entre a
sociedade civil e o governo, destinado ao acompanhamento e à implantação das
políticas públicas para a população em situação de rua. O trabalho do Comitê é
desenvolvido por meio de grupos de trabalhos (GTs), dentre os quais encontra-se
o de Segurança Pública, responsável pelo posicionamento em relação à proposta
de Instrução Normativa acima mencionada.
Após a apresentação
da primeira versão, elaborada pela PBH, por meio da sua Procuradoria, ao Grupo
de Trabalho Prevenção à Violência, foram sugeridas diversas alterações e
solicitado um prazo maior para a discussão da matéria e ampliação do debate. A
questão central, no entanto, refere-se ao recolhimento de pertences pessoais da
população em situação de rua, que embora tenha sido impedido pela decisão
judicial em tela, tal impedimento limita-se ao que a decisão chamou de
“pertences pessoais necessários à sobrevivência”.
Diante dos fatos
narrados, a consulente questiona se o Município de Belo Horizonte e o Estado de
Minas Gerais podem, por meio dos seus agentes, recolher algum pertence da
população em situação de rua sob o argumento de que não se enquadra no critério
de necessidade à sobrevivência.
2- DO DIREITO
Ocorre no presente
caso a interessante discussão sobre a existência ou não do direito fundamental
à propriedade privada, debate que até então estava adstrito aos ambientes
ideologicamente inclinados ao modelo de estado socialista, que não admite a
propriedade privada dos meios de produção, ou à superação do próprio estado em
direção a uma sociedade comunista. Todavia, no que concerne ao combate à
propriedade privada, perpetrado pela Prefeitura de Belo Horizonte contra as
pessoas em situação de rua, não se pode considerar que se está diante de um
processo revolucionário, mas, ao contrário, de um retrocesso perigoso, a um
modelo de governo para o qual as pessoas são separadas em categorias, sendo
algumas consideradas como “sujeitos de direitos”, mas outras não.
2.1 Do Direito de Propriedade
Conforme preceitua a
Constituição Federal, no art. 5º, XXII, bem como todos os instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos, “é garantido o direito de
propriedade”. Não é menos importante, destaque-se, que o direito de propriedade
está condicionado ao cumprimento de sua função social, todavia, uma vez
considerado regular o seu exercício, deve ser garantido indistintamente a todas
as pessoas. Nesse diapasão, temos, todos, o mesmo direito de propriedade, que
se estende sobre todos os nossos bens, úteis, fúteis, "essenciais a
sobrevivência" ou não, desde que não viole o princípio da função social.
O agente público, ou
qualquer outra pessoa não pode apreender, por exemplo, uma caneta guardada no
bolso de um cidadão, nem mesmo seus óculos escuros, ou qualquer outra coisa,
sob o argumento de que tais bens não são necessários à sua sobrevivência.
A resposta aos nossos
consulentes é não. Nenhuma pessoa ou instituição pode violar o direito
constitucional à propriedade privada, quando regularmente exercido, sob a
justificativa de não se tratar de bem necessário à sobrevivência do seu titular
ou possuidor. Pelo menos é o que se tem estabelecido no Estado de Direito há
mais de 200 anos, desde as conquistas fundamentais resultantes das revoluções
burguesas.
A intervenção dos
agentes do Estado que resulta na retirada dos pertences da população em
situação de rua produz um fato jurídico que se aproxima do surrealismo, uma vez
que é preciso defender o direito à propriedade privada para proteger aqueles
cuja tragédia resulta exatamente da existência da propriedade privada dos meios
de produção.
Se a propriedade de
uma caixa de papelão é útil ou não, fundamental para a sobrevivência do seu
possuidor ou não, só ele pode dizer. Se o objeto parece entulho, isto não interessa
ao estado, seu possuidor o decide. Só as pessoas podem dizer a importância de
um bem, seja um anel ou um pedaço de pano, para elas mesmas. Um bem que pode
parecer lixo para uma pessoa pode ser insubstituível para o seu proprietário.
Uma recordação pode ser o único bem para quem o possui, o que pode tornar um
pedaço de pano ou um recorte de jornal em algo de valor inestimável.
Uma
pessoa em situação de rua, para quem o estado e a sociedade retiraram tudo,
negaram tudo, pode ter em seus pouquíssimos bens um último sentido de vida.
Aquilo pouco, sem valor econômico, pode representar o único direito a que teve
acesso. O que leva o estado (em qualquer nível) a retirar das pessoas em
situação de rua os dois últimos direitos que ainda restaram de forma pouca,
incompleta e absurda: o seu pouco ou quase nada direito de propriedade, e o seu
direito de escolher permanecer na rua?
Portanto,
a retirada de bens das pessoas em situação de rua é inconstitucional e se for
regulamentada, por meio de instrução normativa, estará em flagrante violação
dos direitos fundamentais à propriedade e à igualdade.
2.2 Do Direito à igualdade
Uma
vez discutida a inviolabilidade do direito fundamental à propriedade privada,
nos termos da Constituição Federal de 1988, devemos nos perguntar se as pessoas
em situação de rua têm direitos constitucionais. Questionemos ainda se são
pessoas iguais ou, de forma diferente, são menos pessoas, com menos direitos,
como a política de intervenção em sua permanência na rua e a retirada dos seus
pertences faz parecer.
Temos realizado
muitos estudos e publicado muitos textos, artigos e livros sobre o fundamento
que marca a história do Direito moderno, para que este, no passado, tenha
realizado tanta exclusão. Este direito moderno teve, e mostra que ainda tem, a
tarefa de uniformizar, padronizar, normalizar as pessoas, e como consequência
disto, excluir e punir aqueles, que segundo o entendimento de uma época, não se
enquadram. Este dispositivo, intensamente utilizado nos séculos em que o
direito moderno excludente foi construído (desde o século XV), pode ser
compreendido na fórmula "nós versus eles".
Consideram-se parte
do "nós" aqueles que, em momentos históricos distintos, se enquadram
no padrão estabelecido, pelo mesmo "nós", do que é bom, correto,
civilizado, superior, etc. Pertencem ao "eles", por sua vez, o
subalternizado, o explorado, como acontece com o índio, o judeu, o
muçulmano, o selvagem, o bárbaro, o favelado, o pobre, o morador de rua, etc. O
raciocínio que se aplica neste caso em análise é o mesmo que justificou e
justifica o estado de exceção permanente, a suspensão de direitos, bem como a
agressão e a violência do estado contra este "outro"
"diferente".
Diante dos
apontamentos acima, o que devemos nos perguntar é como ainda podemos, em pleno
Século XXI, utilizar um dispositivo construído no absolutismo, utilizado pelo
nazismo e outros regimes de violência e exclusão, no dia a dia de nossas
cidades. Vivemos ainda sob a lógica inconstitucional do dispositivo "nós versus eles",
o que explica, por exemplo, porque são tratadas de forma diferente as pessoas
que vivem em bairros ricos e as que vivem em bairros pobres, as que vivem em
condomínios fechados e as que vivem nas vilas, favelas, aglomerados e outras
comunidades economicamente desfavorecidas.
Em artigo
recentemente publicado, a jurista Vera Malagucci nos lembra que para implantar
uma UPP em um bairro de classe média ou alta seria necessária a decretação de
"estado de defesa" ou "estado de sítio". Mas como o "Estado"
(aqueles que se encontram no poder do Estado) trata as pessoas como se
pertencessem a categorias diferentes de humanidade, como se existisse outra
"categoria de pessoa", os direitos constitucionais das pessoas pobres
ou miseráveis são facilmente violados sem que nada aconteça com os violadores.
2.3 Dos bens necessários à
sobrevivência
O que são "bens
necessários à sobrevivência"? Será que as pessoas no Brasil têm direito à
propriedade apenas dos bens necessários à sobrevivência? Uma casa de campo ou
um automóvel de luxo podem ser bens necessários à sobrevivência? Como apontamos
acima, uma vez que é assegurado o direito à propriedade, tal direito deve ser
garantido a todas as pessoas.
A expressão “bens
necessários à sobrevivência” aparece na decisão judicial do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, em sede de agravo, conforme apontado no item 1 deste parecer,
nos seguintes termos:
"Isto posto, defiro a antecipação
de tutela recursal, determinando aos réus que se abstenham de atos que violem
os direitos fundamentais dos moradores "em situação de rua",
especialmente a apreensão de documentos de identificação e de pertences
pessoais necessários à sobrevivência, à exceção de qualquer tipo de objeto ou
substância ilícita, sem impedi-los, entretanto, da fiscalização necessária ao
bom desempenho da políticas públicas pertinentes"
A propósito da decisão
acima, pensemos nos seguintes termos: suponhamos que uma pessoa que desempenha
um trabalho regularmente ou bem remunerado, como um professor, um juiz, um
médico ou um engenheiro, residente de um bairro de classe média ou alta, saia
de casa e seja abordada por um policial que retira seus objetos pessoais:
relógio, carteira, documentos e um casaco que esta pessoa levava na mão. Este
policial que estava armado leva estes bens para a Prefeitura, joga alguma coisa
fora, leva outros para o quartel. Neste caso, o que teria acontecido?
Até mesmo um leigo em
direito diria que se trata de furto, ou roubo, e abuso de autoridade. A questão
é: qual a diferença entre o que aconteceria na hipótese levantada e o que
acontece com as pessoas "em situação de rua"? A diferença, a grande
diferença, é que o estado é devedor destas pessoas "em situação de
rua" e deveria sim, indenizá-las e tratá-las com respeito e atenção, como
reconhecimento da ineficiência e incompetência, em oferecer para todos os
cidadãos, direitos constitucionais como segurança, dignidade, moradia e
respeito à integridade física e moral.
O que os agentes do
estado (prefeitura municipal e polícia estadual) fazem ao retirar os bens, os
únicos e últimos bens das pessoas "em situação de rua" é, no mínimo,
crime contra o patrimônio, agravado na maioria das vezes pelos requintes de
crueldade, dada a situação de fragilidade na qual estas pessoas se encontram.
3 DOS
CRIMES COMETIDOS PELOS AGENTES DO ESTADO CONTRA AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Como vimos acima, as
pessoas em situação de rua também são sujeitos de direitos, e, por isso,
titulares de direitos constitucionais, tal como qualquer outro cidadão. Da
mesma forma que o atentado contra o patrimônio de um morador de bairro de
classe média enseja a caracterização de crime, toda ação que atente contra os
pertences das pessoas em situação de rua é também crime contra o patrimônio.
Portanto, qualquer pessoa que venha a retirar os bens da população em situação
de rua, seja agente do estado (em nível municipal ou estadual) ou não, estará
sujeita às penalidades previstas para os crimes de furto ou roubo, conforme o
caso:
Art. 155. Subtrair, para si ou para
outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos, e multa.
(...)
Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia,
para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois
de havê-la, por qualquer meio, reduzido à possibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10
(dez) anos, e multa.
(...)
A responsabilidade
dos agentes públicos pela violação de direitos fundamentais, como na hipótese
ventilada, independe de ser por iniciativa própria, ou por cumprimento de ordem
ilegal. Da mesma forma, o Prefeito e o Governador, quando for o caso, deverão
ser responsabilizados por qualquer “política pública” em flagrante desrespeito
aos direitos fundamentais constitucionais.
4- CONCLUSÃO
Por todo o exposto, é
o presente parecer pela inconstitucionalidade da retirada dos pertences das
pessoas em situação de rua, independentemente de serem considerados necessários
à sua sobrevivência.
Sugerimos ainda que a
Instrução Normativa da prefeitura oriente os agentes públicos a não importunar
ou atrapalhar as pessoas em situação de rua, e que apenas se aproximem quando
requisitados para auxiliar ou prestar ajuda, o que deve ser antecedido pelos
seguintes dizeres:
“Como representante do Estado, eu estou
aqui para, formalmente, pedir desculpas pela incapacidade do poder público
oferecer uma condição mais digna para a sua existência. Em sinal de respeito e
reconhecimento estou à disposição para ajudá-lo no que for necessário”
É o parecer.
Belo Horizonte, 12 de outubro de 2013.
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza
[1] Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1986), graduação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II
(1983), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991) e
doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996).
Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e professor
do programa de mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. É coordenador
de projeto do programa Pólos de Cidadania da UFMG e coordenador regional
(região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo democrático latino
americano. Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de
Bogotá; do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires;
foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na
Universidad Nacional Autónoma de México. Tem diversos livros e artigos
científicos e jornalísticos publicados. Tem experiência na área de Direito, com
ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da
Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade,
diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e
constituição.
[2] Doutora em Direito
Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mesma
instituição onde obteve o grau de Mestra em Ciências Sociais, em 2006. Graduada
em Direito pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal, em 1998,
iniciou a carreira acadêmica em 2000, após concluir a especialização em Direito
Público pela Universidade Federal de Rondônia. É Professora Adjunta da
Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e ex-professora Titular do Centro
Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM e do Centro Universitário Newton, aonde
coordenou o Grupo de Estudos em Direito Internacional da Newton Paiva - GEDINP,
como Chapter Academic Advisor, da International Law Students Association -
ILSA. Iniciou a carreira trabalhando com Direito Municipal e Urbanístico,
particularmente com os temas: federalismo, preceitos constitucionais de
organização do município, administração pública, região metropolitana e
desenvolvimento urbano. Foi pesquisadora do Proyecto PAPIIT IN3088093 “Hacia un
estado de Derecho Internacional”, da Universidade Nacional Autônoma do México -
UNAM e atualmente é professora convidada da Universidad Libre de Colômbia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário