quinta-feira, 28 de abril de 2011

Direitos Humanos 2

DIREITOS HUMANOS: EVOLUÇÃO HISTÓRICA

José Luiz Quadros de Magalhães

1 A ANTIGÜIDADE

Vários são os pensadores ocidentais contemporâneos que buscaram no pensamento grego da Antigüidade recursos para o desenvolvimento de suas teses. Na verdade, entre os gregos estão os precursores dos pensamentos que vieram a ser desenvolvidos durante a história do pensamento filosófico e jusfilosófico.
Dessa forma, entende Bodenheimer, encontramos no sofista Trasímaco o precursor da interpretação marxista do Direito ensinando que “as leis eram criadas pelos homens ou grupos que estavam no poder, com o objetivo de fomentar seus próprios interesses”. Para Trasímaco a justiça não é senão o que convém ao mais forte.1
Protágoras (481 [?] - 411 a.C.) pode ser considerado o pensador que antecipou as opiniões dos positivistas modernos. Sustentava que as leis feitas pelos homens eram obrigatórias e válidas, sem considerar o seu conteúdo moral.2
É também no pensamento grego que encontramos a idéia da existência de um Direito baseado no mais íntimo da natureza humana, como ser individual ou coletivo. Acreditavam alguns pensadores que existe um “direito natural permanente e eternamente válido, independente de legislação, de convenção ou qualquer outro expediente imaginado pelo homem”.3 Esse pensamento já nasce numa perspectiva universal, pois a idéia de Direito Natural surge da procura de determinados princípios gerais que sejam válidos para os povos em todos os tempos.
É a partir do momento que os pensadores gregos percebem a existência de uma grande diversidade de leis e costumes nas várias nações e povos que eles colocam a seguinte questão: existem princípios superiores a essas normas específicas que sejam válidas para todos os povos, em todos os tempos, ou a Justiça e o Direito são mera questão de conveniência?
Este é o ponto de partida para o pensamento do Direito Natural que se desenvolverá através dos tempos, e a resposta a essa questão se transformou na conquista gradual, permanente e ainda distante para nós do que hoje conhecemos por Direitos Humanos.
Diversas e interessantes idéias começaram a ser desenvolvidas a partir desse momento, e como são as idéias que direcionam as mudanças, produto do conflito de interesses opostos, vamos aqui demonstrar algumas.
Sem a pretensão de esgotar o tema, e nos permitindo a não-citação de determinados pensadores, comecemos por Hesíodo (poeta do período heróico grego – séculos VIII e VII a.C.). Segundo Oliveiros Litrento, Hesíodo dá a melhor caracterização jurídica à idealização de Homero em sua A Ilíada, simbolizando Dike como a filha de Themis (entenda-se Themis como a deusa da justiça com vista a normas agendi e Dike, deusa da justiça com vista a facultas agendi). No poema A Teogonia, encontramos Dike com suas duas irmãs: Eumonia (boa ordem) e Eirene (a paz), todas filhas de Themis e Zeus. Dike, que tem a missão de realizar a concretização do intrinsecamente justo através dos juízes, combate três opositores: Eris (como a pendência, que subverte a ordem), Bia (como a força, que desafia o Direito) e Hybris (como a incontinência, que transforma o justo em injusto, uma vez ultrapassados os limites do Direito).

“Portanto, não apenas os homens cometem delitos. Os juízes também erram quando suas sentenças não refletem o pensamento de Dike. Logo, a ordem jurídica pode ser afetada por Ethos, ou seja, pelo caráter de uma pessoa, que pode ser o juiz. Quando Dike é desprezada, a subversão pela injustiça destrói o Estado”.4

Heráclito é o melhor expositor da doutrina panteísta da razão universal, considerando todas as leis humanas subordinadas à lei divina do Cosmos. Heráclito assinala que Dike (a justiça) assumia também a face de Eris (a discórdia ou o litígio), daí se compreendendo que Dike-Eris não apenas governam os homens, mas o mundo. A verdade é que o grande filósofo traduz a Justiça como resultado de permanente tensão social, resultado jamais definitivo porque sempre renovado. Heráclito transmitiu para Aristóteles as primeiras especulações em torno de uma justiça-tensão, revolucionária porque sempre renovada, mas sem se opor, antes submetendo-se à lei positiva ao Direito Natural e integrando-a outro não é o motivo por que a lei dos homens (nomos) é sempre injusta quando contrária à lei de um Logos natural e divino (physis).5
Essa idéia dinâmica de mudança constante da realidade e do surgimento de novas tensões, novos direitos, é desenvolvida por Aristóteles, ao afirmar que o justo por natureza é mutável à medida que mudam as realidades a que se refere esse critério de justiça. Dessa forma, pode-se concluir do pensamento de Aristóteles, segundo Recaséns-Siches, que, enquanto o justo vai se realizando progressivamente, brotam novas e diversas exigências da justiça natural.6
Na opinião de Recaséns-Siches, esta interpretação pode ser correta levando-se em conta que Aristóteles afirmou a mudança não somente do justo por lei ou por convenção, mas também o justo por natureza.7
Assim como Aristóteles, Platão está convencido de que o Direito e as Leis (nomos e nomoi) são essenciais para a estruturação da polis. Aliás, com relação do vocábulo polis, Carl J. Friedrih ressalta que muitas vezes ela é traduzida como Estado, uma “expressão moderna que é bastante enganadora quando aplicada à ordem política grega”.8
De acordo com a convicção dos dois grandes filósofos da Antigüidade, “qualquer espécie de positivismo legal segundo o qual a ordem arbitrária de um tirano pudesse ser considerada lei” – uma opinião que foi freqüentemente sustentada sob modernas ditaduras – “é por eles completamente excluída”.9 Com esta afirmação surge uma questão fundamental: qual a origem, a fonte da lei, se esta não está na vontade daquele que possui o poder efetivo no Estado? A difícil resposta pode ser encontrada na doutrina platônica de idéias. A própria palavra “idéia” tem sido, muitas vezes, considerada imprópria para representar o que constitui a essência da doutrina socrático-platônica de idéia ou eidos. Palavras, como “forma”, têm sido sugeridas para satisfazer o fato de que essas idéias não são, para Sócrates e Platão, algo criado pelo espírito subjetivo do homem, mas uma realidade objetiva e transcendente, estranha ao homem. Platão pensava que a tarefa do reformador é tentar criar um Estado que participe, tanto quanto possível, da idéia, pois esta é eterna e imutável.

“Quando Platão escreveu seu famoso diálogo intitulado Politéia ou Constituição (não-República!), pensou estar a braços com um problema muito difícil, mas não insolúvel. Platão acreditava que a solução seria ou os filósofos se tornarem governantes ou os governantes se tornarem filósofos, isto é, homens buscando a sabedoria através de um entendimento real das idéias.”

Entre os estóicos, na escola fundada pelo pensador de origem semita, Zenon (350-250 a.C.), o conceito de natureza no centro do sistema filosófico. Para eles, o Direito Natural era idêntico à lei da razão, e os homens, enquanto parte da natureza cósmica, eram uma criação essencialmente racional; portanto, enquanto este homem seguisse sua razão, libertando-se das emoções e das paixões, conduziria sua vida de acordo com as leis de sua própria natureza.

“A razão como força universal que penetra todo o ‘Cosmos’ era considerada pelos estóicos como a base do Direito e da Justiça. A razão divina – diziam – mora em todos os homens, de qualquer parte do mundo, sem distinção de raça e nacionalidade. Existe um Direito Natural comum, baseado na razão, que é universalmente válido em todo o Cosmos. Seus postulados são obrigatórios para todos os homens em todas as partes do mundo”.10

Esta doutrina foi confirmada por Panécio (cerca de 140 a.C.), sendo a seguir levada para Roma, para ser finalmente reestruturada por Cícero, “de um modo que tornou o direito estóico utilizável, dentro do contexto do Direito Romano, e propício à sua evolução”.11
Para Edgar de Godói da Matta-Machado, há uma certa indiscriminação exagerada entre os estóicos, que confundem “lei geral do universo” com o direito natural que se aplicará a todas as criaturas: plantas, animais e homens. Entretanto, salienta o professor, já entre eles, e mais tarde entre os romanos, mas sobretudo entre os filósofos cristãos, realçar-se-à o aspecto humano do Direito Natural.12
Muitas das formulações encontradas entre os estóicos são semelhantes às estabelecidas por Platão e Aristóteles, mas a obscura doutrina dos estóicos fez explodir a estrutura da polis, o que para os dois filósofos gregos era algo indiscutível. Os estóicos proclamaram a humanidade como uma comunidade universal.13
Com já afirmamos, o estoicismo influiu sobre a jurística romana, e Cícero foi o maior representante na Antigüidade clássica da noção de Direito Natural, real, objetiva. Essa concepção pode ser encontrada no plano do diálogo De Legibus (I, 17-19):

“O que nos interessa, neste discurso, não é o modo de prevenir cautelas processuais ou a maneira de despachar uma consulta qualquer [...], devemos abraçar, nesta dissertação, o fundamento universal do direito e das leis, de modo que o chamado direito civil fique reduzido, diríamos, a uma parte de proporções bem pequenas. Assim haveremos de explicar a natureza do direito, deduzindo-a do pensamento do homem”.14

O que interessa a Cícero é o Direito e não a Lei. Para ele os homens nasceram para a Justiça, e será na própria natureza, e não no arbítrio, que se funda o Direito.15
Apesar da riqueza do pensamento encontrada na Antigüidade, sobre o direito natural e o conceito de justiça, a realidade social não correspondia à preocupação demonstrada pelos pensadores. As civilizações ocidentais antigas baseavam-se, muitas delas, em conceitos primitivos de Justiça, sendo que o trabalho escravo se colocava na base da sociedade como sustentáculo da vida na polis grega ou nas cidades do Império Romano.
A dinamicidade demonstrada no pensamento de Heráclito e Aristóteles fica bem clara quando confrontamos certos aspectos da vida na Antigüidade com as mais recentes conquistas no campo dos direitos da pessoa humana.
Ao estudarmos a vida privada na Antigüidade, podemos por vezes pensar que muito já se caminhou na conquista dos Direitos Fundamentais, mas ao nos depararmos com a nossa realidade de país do Terceiro Mundo, notamos que o leque de direitos muito aumentou, pelas mudanças da sociedade moderna; entretanto, mais direitos ainda têm de ser conquistados, uma vez que muito do que se percebe na Antigüidade ainda não foi resolvido.
Apenas para exemplificar o que acabamos de afirmar, citaremos trecho de trabalho coletivo intitulado História da Vida Privada, onde percebemos, nos costumes gregos e romanos da Antigüidade, o desapreço a determinados direitos individuais básicos:

“O nascimento de um romano não é apenas um fato biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe da família; a contracepção, o aborto, o enjeitamento das crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de uma escrava são, portanto, práticas usuais e perfeitamente legais [...]. Em Roma um cidadão não ‘tem’ um filho: ele o ‘toma’, ‘levanta’ (tollere); [...]. A criança que o pai não levantar será exposta diante da casa ou num monturo público; quem quiser que a recolha. [...] Na Grécia era mais freqüente enjeitar meninas que meninos; no ano 1 a.C. um heleno escreveu à esposa: ‘Se (bate na madeira!) tiveres um filho, deixa-o viver; se tiveres uma filha, enjeita-a.’ Mas não é certo que os romanos tivessem a mesma parcialidade. Enjeitavam ou afogavam as crianças malformadas (nisso não havia raiva, e sim razão, diz Sêneca: ‘É preciso separar o que é bom do que não pode servir para nada’, ou ainda os filhos de sua filha que ‘cometeu uma falta’. Entretanto, o abandono de filhos legítimos tinha como causa principal a miséria de uns e a política patrimonial de outros. Os pobres abandonavam as crianças que não podiam alimentar; [...] a classe média, os simples notáveis, preferia, por ambição familiar, concentrar esforços e recursos num pequeno número de rebentos.”16

Como se pode notar, muitas características da sociedade romana estão ainda presentes entre nós, mais notadamente a existência de valores que colocam o patrimônio privado em escala valorativa maior do que a própria vida humana. Isso se manifesta ainda na atualidade em algumas normas jurídicas esparsas, civis e penais.
Em análise da origem e desenvolvimento das diferenças sociais causadas pela transformação de Roma em grande potência, Léon Bloch escreve:

“Na Antigüidade a política imperialista era um fenômeno necessário que coexistia com a democracia; ensinamento que também a história de Atenas, única potência grega nos proporciona [...]. A política imperialista das democracias não foi outra coisa senão uma política de exploração. O trabalho corporal, pessoal, não goza de consideração nenhuma onde impera a escravidão. Na Antigüidade o cidadão não sentia alegria com os trabalhos no campo ou na obscura oficina; ao contrário: aspirava a que outros trabalhassem por ele da mesma maneira que as famílias nobres do país, em gerações passadas, mantiveram em sujeição econômica as demais classes sociais – e tudo isto em plena consciência da dignidade que confere a soberania popular.”17

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